quarta-feira, janeiro 19, 2005

34. Ou talvez três...




Setembro...

Ao longe, avista-se o campanário da basílica, altivo e vigilante, como que à espera que o Outono chegue e abrace a cidade.

O final da tarde vai chegando e traz consigo o rodopio humano daqueles que apressados saíram há escassos minutos do trabalho e rumam a parte incerta...

Duas ou três pessoas param para admirar extasiadas a beleza que reveste o parque nesta altura do ano. Um espectáculo multicolor, incrivelmente belo. As copas das árvores balançam, suavemente, como se o murmúrio do vento fosse uma doce balada e, aqui e ali, o chilrear de meia dúzia de pássaros alegram a alma de quem por lá circunda.

Num dos edifícios que ladeiam o jardim, o vidro transparente da janela protege o pequenino corpo do frio que começa a amarelecer as folhas mais frágeis da vegetação. A febre é alta e o choro uma constante. Ao lado do berço, uma figura feminina observa o pequenito com uma expressão enternecedora... enquanto a mão bronzeada afaga o rosto da criança.

Aquele pequeno ser parecia-lhe tão indefeso. No entanto, com apenas meses travava uma dura luta pela sobrevivência. Perguntava-se, enquanto lhe via os olhos abrir e fechar-se turvos pela temperatura altíssima que o consumia, se conseguiria sobreviver?! Não queria pensar no pior... mas o médico não parecera muito animador quando há minutos lhe dissera que faziam os possíveis e os impossíveis para que recuperasse.

Onde estaria a mãe daquela criança?! E o pai?! A revolta ressurgiu dentro de si.

Há duas semanas quando se preparava para sair para o trabalho encontrou um pequeno cesto de verga junto à sua porta. A princípio e notando um diminuto vulto, embrulhado num trapo que já vira dias melhores, pensara tratar-se de uma surpresa dos seus alunos. Um pequeno cachorro, talvez! Ao desviar o tecido a surpresa tomou conta de si:... um bebé com cerca de três meses!

O choque abalou-a de tal forma que quase desfaleceu. Sentou-se nas escadas e ali permaneceu até que o choro do pequenito a libertou do transe. Que poderia fazer?!

Telefonou para a escola decidindo que não poderia trabalhar naquele dia. Informou-se, junto da assistente social do seu agrupamento de escolas, sobre o que poderia fazer. Assim que teve a orientação necessária, para começar aquela que seria uma árdua luta pela defesa da criança, encaminhou-se para a clinica à qual recorria quando necessitava de serviços médicos.

A criança parecia estar desnutrida, como se há semanas não fosse alimentada convenientemente. Ao chegar deparou-se com as habituais dificuldades burocráticas mas como a conheciam acabou por conseguir que fosse consultada Uma vez lavada e vestida com roupinhas adequadas, o rosto antes enregelado apresentava-se agora rosado e sorridente.

Um turbilhão de ideias assaltaram-na fazendo com que desejos ocultos espreitassem a luz do dia. Valeu-lhe o auxilio da assistente social para ficar com a criança até que aparecessem os pais. A afeição ia crescendo e, na verdade, o que mais ambicionava era poder adoptar o bebé. Protegê-lo, educa-lo e dar-lhe todo o seu amor!
Magoava-a verificar que alguém negligenciara de forma criminosa aquele inocente. A coragem hipócrita de tal acto abatia-se sobre si e revoltava-a.

Com 20 anos fora confrontada com o facto de que só mediante uma penosa intervenção cirúrgica poderia gerar filhos. Depois de 11 anos continuava inconformada com essa fatídica realidade.

O abandono de crianças inocentes era para si intolerável.

Olhou para as paredes brancas do quarto. Sentia-se impotente.

Há dois dias atrás, sem qualquer aviso, a febre começara. O corpo debilitado de Vasco, assim chamava o bebé, não resistira à voracidade de um vírus. Apenas um ténue fio de esperança parecia prendê-lo à vida.

No corredor duas enfermeiras espreitavam compadecidas para o quarto. O amor e a atenção que aquela mulher consagrava à criança eram perturbadores. Poucas pessoas se dedicariam, de corpo e alma, a um ente com quem não tinha qualquer laço familiar.
O médico conjuntamente com a assistente social tentavam, desesperadamente, localizar os pais da criança para averiguar dados clínicos que os auxiliassem no tratamento mas poucas novidades tinham. Supunha-se que deveriam residir na vizinhança e conheceriam, pelo menos, superficialmente a professora.

Marta sentiu-se observada e olhou para a porta, João, o responsável clínico, aproximou-se com um sorriso reconfortante.

- Recebi agora um telefonema. Conseguimos localizou um familiar do menino… a avó.
- Avó?! E os pais?! – a surpresa tomou conta de si.
- Marta, a história é um pouco mais triste do que pensamos... Os pais dele morreram num acidente há um mês e era a avó que cuidava dele. O dinheiro de uma reformada escasseia. A decisão de o deixar à sua porta foi, para ela, inevitável.
- Mas... como?! Eu conheço-a?! Como sabia que o trataria bem?! – o seu olhar confuso revelava a dor que a possibilidade de perder Vasco lhe suscitava.

O jovem suspirou. Surpreendia-o que nos dias que correm alguém tivesse valores tão nobres como aquela mulher. Vasco era um bebé com muita sorte. Ninguém hesitaria em depor a favor da adopção dele pela menina Marta, como era gentilmente tratada pela equipa de enfermagem.

- Suponho que sim pois moram bastante perto. Provavelmente, saberia que era professora e da sua afeição pelos alunos.
- ...não quero perder o Vasco. – murmurou enquanto os olhos repletos de lágrimas se depositavam sobre o rostito oval.

No seu cérebro registava-se a custo a informação. Os pais morreram. Uma avó com pouco dinheiro obrigada a abandonar a criança á porta de um desconhecido. Ela, uma professora com meia dúzia de anos a leccionar adolescentes, uma boa situação financeira e uma enorme afeição por crianças. Contava com a ajuda da assistente social e do médico. Não pretendia afastar o menino da avó mas não podia negar que o amava como se fosse fruto do seu ventre. Seria possível conseguir, legalmente, a sua custódia?! No dia seguinte falaria com a mana, como carinhosamente chamava a irmã. Era advogada e saberia melhor do que ninguém como proceder para dar início ao pedido de adopção legal. Levaria muito tempo. Envolveria, provavelmente, o Tribunal de Menores e um não sei quantas entidades, Lutaria! E Vasco haveria de resistir como um bom menino!

Julho...

O tempo passara. Há muito que as frondosas árvores se tinham revestido de novas folhas. Os pássaros, em maior número que no passado mês de Setembro, persistiam no seu chilrear e os pequenos olhos outrora febris erguiam-se para ela brilhantes reflectindo toda a alegria sentida.
Voltara inúmeras vezes à clinica para que Vasco fosse consultado. Pura rotina. Certo é que, em nenhum desses dias estava tão feliz como naquele momento!
A vida parecera-lhe tão injusta quando, acabada de sair da adolescência, soubera que nunca seria mãe. O destino encarregara-se de a compensar. Minutos antes de sair de casa recebera um telefonema com a boa nova... Finalmente, era a mãe legal do pequeno Vasco.
Os corredores apertados do edifício já não lhe pareciam tão impessoais Ali encontrara mais que doces olhares e reconfortantes sorrisos, pessoas sensíveis e amigas que a tinham apoiado incondicionalmente nos últimos meses. Era com um prazer enorme que lhes comunicaria a noticia!

Abraçada ao seu filho, caminhou pelo corredor em direcção ao pequeno gabinete. João seria o primeiro a saber. Tinha sido um amigo incansável.
Bateu levemente na porta branca...

- Entre!! – Aquela voz reconfortava-a. Era forte e ao mesmo tempo suave, doce, envolvente. Perguntava-se quando se teria apaixonado. Talvez tivesse sido naquele primeiro dia em que com as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto entrou com o menino nos braços a arder em febre. Aquele homem tinha sido incansável.
- Sou eu... - O sorriso desvaneceu-se ante a visão de uma elegante mulher que junto a João o olhava embevecida. A mão feminina pousada sob o seu ombro não passou despercebida a Marta. Procurou recompor-se e disfarçar o desapontamento que aquela visão provocara.
- Olá! Desculpe... Como tinha consulta com a Dr.ª Noélia resolvi passar por aqui para lhe contar que finalmente já consegui a adopção.

O coração de João acelerou-se. O desconforto de Marta atingira-o. A vida era madrasta. Desde que a vira que a sua presença o perturbava. Ocasiões houvera em que pensara estar a apaixonar-se perdidamente... mas como se poderia aproximar?! A ética profissional impedia-o. E Marisa. Uma bela mulher, algo fútil mas incrivelmente sedutora. Saiam juntos há dez meses e recentemente a sob pressão de ambas as famílias anunciaram o noivado. Um desfecho que não queria. Uma noiva que não desejava.

- Fico feliz, Marta! Vocês mereciam isso! Desejo-lhes as maiores felicidades.

Num murmúrio de voz, Marta, despediu-se e dirigiu-se à consulta.
Pelo menos tinha o seu filho. Nostálgica, olhou para o rosto da criança. Tinha os olhos grandes, de um castanho esverdeado que ia alternando de cor conforme o estado de espírito. O cabelo sedoso castanho claro revelava, aqui e ali, um tímido caracol mas era o sorriso meigo que mais encantava as pessoas na rua. Irradiava alegria.

Uma hora depois João aproximou-se da janela de onde avistava o passeio que circundava o parque. Surpreendeu-se quando, debaixo da copa frondosa de uma árvore, avistou Marta e Vasco que alimentavam os pássaros com miolo de pão. Sentiu que, por momentos, sustera a respiração. Gostava muito deles.

Há pouco... num rompante tomara uma decisão e falara com Marisa. Aquele compromisso não fazia sentido quando havia uma completa e chocante ausência de amor. O tempo passaria...e tinha esperança! O futuro havia de se encarregar de prosseguir o enredo da sua vida e convertê-lo numa história, predominantemente, de amor, sinceridade e lealdade.

Voltou a olhar para o parque… mas não avistou viva alma. Estava deserto!

Agosto... Setembro... Outubro... Novembro... Dezembro...

As ruas estavam repletas de transeuntes que corriam, de loja em loja, para comprar uma última prenda que fora esquecida. Marta com Vasco ao colo vai conversando com o filho alheia a que do outro lado da rua alguém pára e a observa... baixa os olhos... e segue o seu trajecto derrotado pelo medo de perder a ilusão…

Estava linda. Vasco também. Tinha saudades. Muitas.

Meia dúzia de passadas e arrependeu-se da sua cobardia. Devia tê-los abordado. Que mal haveria em saber como estavam?! Voltou atrás e percorreu a Rua Augusta até ao cimo… espreitou cada loja até que se deu por vencido. Na vida havia um momento certo para tudo...


Marta entrou em casa exausta. O menino crescera e as costas reclamavam o esforço que as caminhadas com ele ao colo, representavam.

Faltava uma semana para o Natal e sentia-se satisfeita. Os presentes estavam debaixo da árvore, o frigorifico abastecido e a lenha no cesto ao lado da lareira. Seria um Natal bastante íntimo na companhia dos pais, da irmã e dos avós maternos. Amava aquelas pessoas e reconfortava-a saber que mesmo não sendo a mãe biológica de Vasco, dedicavam ao seu filho o mesmo tipo de amor que lhe dedicavam a ela.

Ás vezes sentia a falta de uma companhia masculina, quase sempre tal sentimento lhe sugeria a imagem de João mas a vida era assim... não se podia ter tudo! Ou pelo menos assim se dizia.

Também convidara a avó do seu filho para passar a Consoada com eles e perguntava-se se compareceria.. se o fizesse a sua felicidade seria quase plena.

Os pensamentos de Marta dispersaram-se... enquanto reflectia sobre o mais profundo da sua essência e sobre a pequena parcela que faltava para que os risos fossem realmente cristalinos.
Não possuíra a necessária coragem para lutar pelo amor que a consumia... ou seria que, aquela emoção... aquele sentir que a elevava aos céus era, basicamente, uma ilusão e nada que fosse comparável ao verdadeiro sentimento?!

Em tempos, Marta tivera esperança. Hoje conformara-se. João estaria, certamente, casado com Marisa e o desabrochar da mágica centelha que julgara entrever seria, tão somente, uma fantasia.

Se pudesse apelaria a todos os seres humanos que não prescindissem do amor! Lutar pela felicidade era imperativo! Sonhar também...

Reflectindo sobre tudo isto, ergueu-se do sofá, não sem antes acariciar o rosto sorridente do filho. Ligou o gravador de mensagens. Dois ou três telefonemas da mãe, um da irmã e... o seu coração bateu mais forte ao ouvir aquela voz...

- Olá,. Marta! É o João... Hoje de tarde, penso que te terei visto na Baixa e... bom... enfim… tenho saudades! Gostava de saber noticias vossas... Também telefonei para vos desejar um Feliz Natal. A propósito... pergunto-me se ficarás em Lisboa?! Bom... espero que em breve possa ter noticias vossas. Beijinhos.

Que significava aquele telefonema?! Quantos meses passaram desde a última vez que o vira?! Recordou os meses que antecederam o último encontro, os inúmeros diálogos na cantina da clínica e os passeios pelo parque... os sorrisos, os olhares e as conversas! Talvez no dia seguinte lhe telefonasse… ou, simplesmente, desse um dos passeios que outrora eram partilhados pelos três… desta vez seria a dois...

Ou talvez a três...

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