terça-feira, janeiro 11, 2005

31. Sentimentos errantes...



Não é um carrossel, nem um baloiço, nem um carrinho da feira. É um velho autocarro da carris que percorre as ruas labirínticas, aparentemente prestes a desintegrar-se. Os seus arrítmicos solavancos vão sacudindo o corpo frágil de Marta.

O trajecto é curto mas longo o suficiente para permitir que o pensamento vá, também, estremecendo e sublinhando, nos meandros mais profundos do ser, os episódios que nenhuma esponja poderá apagar ou esbater..

A nostalgia invade cada poro da pele no mesmo instante em que na alma apenas se dilui, com o leve dispersar, a música de uma vida absorvida pela inabalável força dos guerreiros. Mais que os mil personagens dos romances que lê, Marta revê-se a ela, nas páginas daquele que, prostrado sob o colo, tem sido o companheiro dos últimos dias. A mesma intensidade de sentimentos... a mesma fluidez de acontecimentos a beirar-lhe a rotina insípida e, mais que isso, a mesma capacidade para no temer... sonhar!

Ultimamente, o seu quotidiano divide-se entre o desgastante trabalho numa escola pública e as lides, ainda mais entediantes, da casa recém adquirida. Casualmente, uma fuga até à praia, um mirar compenetrado do écran do cinema ou um exultante bater de palmas àquela peça de teatro, tão badalada.

Em quarenta anos, o tempo não conseguira desvanecer-lhe o penetrante olhar nem vincar o rosto de traços definidos com o franzido natural da pele... Era, afinal, uma imagem viva daqueles seres que nos sugerem que a beleza não tem, realmente, idade.

É bonita! Sabe que o é… ainda que de tal não se aproveite para sobressair! Isso torna-a ainda mais bela e distinta! Assim pensa Duarte. Apercebera-se disso há muito e, desde então, não perde uma única oportunidade para a observar embevecido como que hipnotizado por tamanha sensualidade feminina.

A primeira vez que a trama dos seus passos se cruzara com a dela tinha 14 anos. Ela 25! Ele era o aluno. Ela a professora de geografia e nunca a actividade vulcânica lhe fizera tanto sentido.

Fora, afinal, uma paixão assolapada como todas o são, na adolescência. Daquelas que deixam marcas imutáveis vida fora e fomentam em cada reencontro um estado de espírito nada próximo da indiferença.

Revê-la devolvia-lhe imperativamente a mesma sensação. O estômago a contrair-se, o coração a acelerar e o brilho dos olhos a acentuar-se de tal forma que ofuscaria o sol! Só dos seus lábios não saia nenhuma palavra, exuberante, que o denunciasse!

Apesar de 15 anos decorridos, continuava a sentir-se como o aprendiz... ela a mestra...

Nos últimos anos, discretamente, seguira as suas passadas com fidelidade e secretismo. Para além de meia dúzia de inocentes palavras, trocadas a cada casual encontro, apenas se atrevera a enviar-lhe, anonimamente, um ramo de rosas nos seus aniversários.

Divertia-o imaginar como reagiria se descobrisse quem era o autor de semelhante empreendimento mas, mais que isso, deliciava-se quando nos momentos mais isolados do mundo, enquanto saboreava um ou outro café a fumegar, deixava o pensamento livre para tecer os enredos que a imaginação lhe ditasse... Como seria o sabor do seu beijo, o calor do seu abraço ou o cheiro da sua pele?

Sentado a alguns metros da musa dos seus sonhos, tão perto e tão longe, o sangue corria mais rápido nas veias. A excitação consumia-lhe a alma e num impulso desmedido, vencendo a barreira invisível que os separa, abordou-a:

- Olá professora! Então, como vai?

O sorriso tantas vezes apreciado e manifestamente desejado surgiu:

- Bem! E o menino?!

- O menino está bem como sempre!

- Não me tinha apercebido que vinha no autocarro...

- Também só reparei agora que estava aqui... há muito que não a via.

- Este ano as aulas são de manhã. Hoje é que fiquei até mais tarde... – desabafou Marta.

- E que tal são os meninos...?

- Acredita que me fazem ter saudades das suas lagartixas com laços cor de rosa...

Um tom escarlate cobriu inesperadamente a face de Afonso.

- As coisas que se fazem para atrair a atenção de uma professora bonita!

- Diga antes, as coisas que se fazem quando não se pensa...

A reprimenda camuflada pelo tom divertido relembrou Duarte que havia nela muitas outras características que o tempo não desvanecera... como o senso de humor.

A conversa decorreu durante momentos enumerando velhos tempos em que as suas vidas se cruzaram e nenhum dos dois se apercebera de que para Marta o percurso estava prestes a terminar. Quando isso sucedeu Duarte murmurou, impulsivamente, a tão desejada sugestão:

- Olhe... um dia destes telefono para...

Marta sorrira vagamente. Sentia-se culpada pela traição do coração que batia demasiado descompassado e da sua imaginação que, insistentemente, lhe sugeria demasiadas imagens...

...mas os dias sucederam-se sem que o encontro se consumasse! Naquele dia, véspera do seu aniversário, o destino espreitava-a à esquina, atento, mordaz e fatal.
Há minutos em que as tramas da vida nos afastam dos propósitos delineados... e nos arrastam para paragens inacessíveis... Fica na memória cada instante, simples e mágico, em que os olhares se partilham e os corações se incendeiam mas também permanece a frustrante sensação de que o sonho foi, indefinidamente, adiado pela vida... pela morte... pela assaz sina.

Registado fica também o momento tenebroso em que aquele coração feminino, condenado a um amor suposto impossível, nunca revelado... nunca vivido à luz da realidade, é atirado para a penumbra. Uma acto brutal consumado por um pequeno grupo de delinquentes que, na busca incansável de mais umas moedas para a dose diária, não se contentaram em saquear.

E assim principiara um inicio de noite... que prometia ser o começo do desabrochar do Amor e se revelara afinal num exímio e macabro assalto à vida!

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