terça-feira, novembro 29, 2005

104. Os laços e as sombras ( IV )


- Hoje ninguém sai de casa.
- Está um frio terrível, menina. É o que é! - exclamou o atarracado dono do café enquanto a servia - Só se está bem no quentinho. Tu é que és jovem e tens sangue na guelra... caso contrário também não estavas aqui.
- Obrigada, Sr. João. – disse enquanto aproximava a chávena. - Se calhar devia ter ficado em casa, mas desde que saí do hospital, só estou bem é na rua.

O homem, senhor dos seus sessenta anos, olhou-a carinhosamente.

- Sr. João?! Fui despromovido?!
- Desculpe... – Catarina sorriu – Tio João.

Ele e a esposa tinham nascido no seio de, pequenas e tradicionais, famílias de Trás-os-Montes e os parentes por lá continuavam. Quando vieram viver para Lisboa, os tempos eram outros. Tempos difíceis em que lhes valeu a amizade de um jovem casal, filho da terra que haviam deixado para trás: os pais de Catarina. Se não fossem eles, até fome teriam passado.
João da Rega, como era conhecido, nunca poderia esquecer o que lhes devia. Não era dinheiro mas um bem mais precioso.
O elo perdurara ao longo dos anos e, ainda hoje, eram indiscutivelmente as únicas pessoas, em Lisboa, a quem poderiam chamar amigos.
A pequenita nascera alguns anos depois da intempestiva e aventureira cruzada até à cidade, numa altura em que ele e a esposa já tinham aceitado o destino e o facto de não poderem ter filhos. A afeição que lhe dedicaram era de tal forma que, apesar de entre eles não existir qualquer vínculo sanguíneo, era inconcebível não a considerarem uma sobrinha muito querida.
Quando a vira há uns meses, entre a vida e morte, o coração comprimiu-se e muitas lágrimas derramou com Mariana, a esposa, junto ao leito do hospital.
Chocara-o saber que depois do acidente pouco se recordava da vida que tinha até então ou, até, das pessoas que conhecia.

A voz melodiosa interrompeu-lhe o curso dos pensamentos:

- Não ligue, tio. Esta minha cabeça ainda não voltou ao lugar mas há-de voltar. – piscou-lhe o olho bem-humorado.
- Claro que sim, querida. É só uma questão de tempo e paciência.

João da Rega afastou-se enquanto sorria. A esperança é a última a morrer.

(Continua...)

Capítulos anteriores:
I II III IV

quarta-feira, novembro 23, 2005

103. Nada de nada


Espreito a noite pela janela
E a estrela mais bela,
Enquanto cerco as palavras de fantasia
E dou asas ao pensamento.

Do outro lado da rua deserta,
O eco da alegria,
O vislumbre do vulto
E a antevisão do momento.

O culto oculto é o código
E o código, fruto da lógica ilógica,
Intensa e demorada,
registado em miradas, mais ou menos, profundas,
A verdade que não é denunciada.

O silêncio converte-se em riso
Quando confunde o enredo
E tudo é coragem... nada medo.

Anulo a distância,
Da janela à porta, meia dúzia de passos.
Corre a magia,
Espanta-se a nostalgia
E galopante é a hora, quando me acerco.

Esfuma-se a ilusão,
Instala-se a confusão
E do tumulto que assalta o coração...
Nada de nada transparece.

Criminosa, culpada mas também receosa,
O sorriso surge, por entre os fios dourados,
Sem que se perceba o seu destino...
Na camuflagem das sombras ousa-se,
Esbate-se a máscara
Mas, eis que se não quando, parte...
Parte O vulto...
Fica o vazio da calada da noite
E o regresso à janela...
de onde se contempla a... ruela.

Espero pelo novo dia,
Aquele em que o luar ou a mais singela luz,
Me revela, inebria e seduz...
Aquele em que, de olhos nos olhos,
Sem receios ousarei...
Ousarei abraçar o segundo, o minuto, a vida ou o amor
E murmurar-lhe docemente:

Não partas... Estou aqui!*


* Versos editados a 25 de Novembro, com o intuito de não defraudar quem mantém viva a fé no amor e gostaria que os vultos não partissem.

segunda-feira, novembro 21, 2005

102. Devaneios de uma noite...


A tarde avançava sem nada de extravagante suceder quando o convite surgiu. Uma ida ao Chiado, uma visita à Fnac, a apresentação de um novo livro, Lídia Jorge oradora e um par de horas envolvida pelo mundo mágico dos livros. Impossível resistir.

Desci a Alameda, como quem flutua sobre as águas calmas de um mar tão sereno como o sono de um bebé, e aproximei-me da Baixa já a rasar as 19 horas.
Apressei o passo, na ânsia pura e descomprometida de não perder um único segundo daquele momento que antevia como enriquecedor e aprazível.
Subi as escadas sem sequer fixar a mirada nas pessoas que por mim passavam e quando entrei no recinto sombrio mas acolhedor bebi... bebi as palavras que se desprenderam daquela voz bem colocada e dei asas ao sonho.

Será alguma vez me sentarei naquela cadeira e de mãos nervosas ajustarei o microfone à minha baixa estatura?! Ou me inclinarei sobre a mesa para me desviar da luz de um qualquer foco que me impede de ver os rostos à minha frente...?! Mas acima de tudo e o mais importante, será que algum dia deslizarei os dedos pela capa dura de um livro onde figurará o meu nome, sabendo que haverá alguém com quem partilhar o que, com tanto carinho, criei?! A incerteza estimula a mente e garante a força necessária para continuar a sonhar, que é como quem diz... lutar!

Quando por fim me atrevo a desviar o olhar do palco improvisado dou-me conta da presença de três dezenas de pessoas que, mais ou menos, atentamente seguem o cativante discurso.

Há uns anos tive uma página na internet... Também eu!

Já não a tenho, começou a dar muito trabalho… Eu ainda…

No início o parco conhecimento em linguagem html, javascript e afins limitou-me a criatividade e quase desisti. Muitas foram as horas dedicadas a adquirir os necessários conhecimentos para apresentar um "recanto" que pretendia personalizado.

O pequeno embrião cresceu e hoje assemelha-se a um pequenito que começa a gatinhar. É com orgulho mas também humildade que o digo. É o menino dos meus olhos!
Em formato de blog, na maior biblioteca que o mundo possui, lá está ele. Porque gosto de escrever! Porque gosto de partilhar as palavras, as frases, os contos, as crónicas, os poemas... os rabiscos das horas incertas!

Um ano depois, valeram a pena as muitas horas roubadas ao sono, aos passeios, aos amigos… e quase diria, se me atrevesse a tanto, à vida. Mas não atrevo… porque nenhum minuto foi em vão.
O prazer de saber que algures alguém lhe dedica meia-dúzia de minutos compensa o cansaço que se possa acumular e os momentos de puro lazer que, por ele, foram comprometidos.

Nunca pensei converter estes contos num livro.

Sorri. Sempre gostei de sorrir…e ali fiquei, de pés fatigados e olhos doridos pelas muitas horas em frente do computador. O coração palpitante, a mente aberta e os ouvidos atentos denunciavam o encanto que me envolvia quando, de mim para mim, tecia as mais diversas considerações sobre cada frase que escutava.

Já no fim da sessão comprei o livro, "O amor por entre os dedos", cujo autor /escritor define como sendo um livro de contos narrados num tom inverosímil, por vezes a roçar o non-sense..

Duas ou três horas depois, o livro pousado sobre a mesa de madeira, li atentamente as primeiras páginas e confesso-me culpada deste mau hábito de, mais que ler, analisar.

Se tivesse que elaborar uma recensão talvez focasse o humor e a ironia que sustinham os enredos. Mas, mea culpa, gosto dos floreados das grandes descrições que os clássicos nos apresentam; daquela linguagem ornamentada e rebuscada que ainda persiste nos livros de alguns, poucos, autores da actualidade e que bem era apresentada por Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Antero de Quental ou Júlio Diniz… para não me alongar nos sonantes nomes que poderiam ser mencionados a título de exemplo.

Ora, António Manuel Venda, o jovem escritor de quem falo, adopta as palavras simples, e num primeiro impacto, ao mais desatento e "quadrado" leitor, parecerá que lhes falta encanto. Errada conjuntura. Falta encanto a quem as ler impregnado de ideias pré-concebidas sobre literatura. Acuso-me de me ter encaixado nesse perfil mas, votado o estado de espírito menos aberto e tolerante ao descrédito, a verdade é que adorei… adorei aquele conjunto de textos romanceado e bem-humorado; a tal ponto que se voltasse a entrar naquela sala aplaudiria com mais convicção o escritor e o senhor escritor que me recordou que cada livro é um… Livro!

quarta-feira, novembro 16, 2005

101. Euforia


Danço na chuva,
Como quem evoca velhos deuses...
E acredita na estrela cadente
Que rasga o céu e se funde, no horizonte, com o mar.

Danço na chuva,
De olhos postos na chama ardente,
Que brilha para lá da vidraça
E me faz adivinhar os contornos do que é amar...

Ébrio é o momento,
Viva é a emoção,
Enquanto, subjugada ao ritmo, me movimento
E, acaricio a vida, bebendo-lhe os segundos.

Peço um desejo,
Construo um sonho,
E deixo-me levar pelo que antevejo
Ser tão real,
Ser tão intenso,
Ser tão mágico como o teu regresso!!

Danço na chuva...
Não há frio que castre a euforia,
Não há trovão que assuste,
Tudo é magia,
Tão intensa como esta sede de música e alegria!
Tão intensa como o teu sorriso,
Quando debaixo do mesmo céu te murmuro:

Acredita no sonho!!

domingo, novembro 13, 2005

100. São palavras...


São palavras...
E leva-as o vento, a brisa que se desprende da tua voz...

São palavras...
E desfazem-se na espuma branca da praia...

São palavras...
Às dúzias... às centenas...
Letrinhas agrupadas que procuras retratar sem êxito...

Palavras e mais palavras...

São palavras...
Falam de sonhos que são realidade,
De ódio que é amor,
De mentira que é verdade,
De tristeza que é alegria...
Gastas, efémeras, vagas, fruto de outros dias.

São palavras...
Que carregas dentro de ti sem se saber...
Porque cegos estão os olhos e o coração.
Deixa fluir a energia,
É preciso que seja o teu corpo a confessar...
E a por ti falar!
Verás então que não é dor mas fome...
Fome de emoção, de paz e de magia,
O que te vai na alma.

quinta-feira, novembro 03, 2005

99. Palavras soltas


Vida. Rumo.
Paz. Fumo.
Amizade. Felicidade.
Gato. Cão.
Fado. Ilusão.
Criança. Esperança
Silêncio. Brisa.
Mar. Amar…


Suspiro levado pelo vento
Nas horas que invento
Enredos, encantos tamanhos,
mágicos fragmentos da inspiração,
Que não possuo mas ouso denunciar!
Acreditar! Ver!
Sentir como se pressentir fosse a valer
E, afinal… sorrir, serena na leda madrugada
Em que mais que dormir, foi escrever
O verbo que se impôs, que se quis, que se embalou!

Vida. Rumo.
Paz. Fumo.
Amizade. Felicidade.
Gato. Cão.
Fado. Ilusão.
Criança. Esperança
Silêncio. Brisa.
Mar. Amar…


Assim são as palavras soltas…
Das noites de voltas e mais voltas…

Assim sou… Eu!!

98. Inverno



O rigor do Inverno desce a rua
Abraça a árvore nua…
Sem sequer a fitar!


Revejo-te nela, quando sorris
E bebo o calor das tuas palavras,
Numa ânsia desmedida de recuperar o cálido fôlego.

Na verdade pura… crua…
És tu e só tu… quem desbrava a calçada,
Fustiga a intempérie,
E acarinhas um corpo frio, hirto…
A quem chamas Amor.

O sonho contorce-se à esquina.
Delira a ilusão.
Quem se aproxima é a dor…
Dor de saber gelado o coração.
Dor de conhecer o estado da alma.
Dor de pressentir distante o pensamento.

Inverno que é Verão,
Verão que é Inverno.
Brisa que não é vento,
Vento que não é brisa.
Velas que são trapos,
Trapos que são velas.
Eu e tu, numa viagem sem volta,
Onde nunca embarquei,
Onde não sentiste mais que revolta.

Sonho…
Invento…
Deliro…
Qual de nós o quente e o frio?!
O verdadeiro e o falso?!
O fiel e o traído?!
O seduzido e o sedutor?

Eu e tu, duas peças de um puzzle
Infame, irreal, obsoleto…
Onde nunca percebi pertencer.

Sorris, lábios contorcidos.
Sentimentos adormecidos, quiçá esquecidos
No momento em que te deixas abraçar
E te sabes não amado.

Quebra-se o encanto!

O rigor do Inverno desde a rua,
Abraça a árvore nua…
Sem sequer a fitar!


Desço-a…
O soluço paira já no ar,
Quando os meus olhos te confidenciam…
Não te posso amar.

terça-feira, novembro 01, 2005

97. Os laços e as sombras ( III )

- Não podes recusar! – Repetira-lhe Matilde

Perante o ar aparentemente indiferente de Catarina insistiu:

- Quantas vezes te ouvi dizer que se a oportunidade surgisse não a recusarias. Há quantos anos esperavas por isto?!

Encolheu os ombros e rodopiando sobre si própria olhou pela vidraça da janela.
O dia amanhecera estranhamente calmo, sem que pudesse adivinhar o emaranhado de indecisões que a levariam quase à exaustão, horas mais tarde.
Se o convite tivesse surgido há um ou dois meses teria aceite sem hesitar mas, naquele espaço de tempo, muita água correra debaixo da imponente ponte pombalina.
A copa das árvores balançava, suavemente, abrigando do sol meia-dúzia de barulhentos
pardais, animados frequentadores do parque.
Suspirou e encolheu os ombros, remetendo-se a um pesado silêncio.
Sentia-se numa encruzilhada e tinha por hábito escolher o trilho mais hostil. Os desafios sempre tinham sido sedutoramente estimulantes e este apresentava-se grande de mais para ser recusado. Essa era a verdade.
Aceitá-lo revelar-se-ia no concretizar de um sonho.

O convite surgira pela mão de um conhecido de longa data, também ele sociólogo.
Afonso fizera o doutoramento na Universidade de Salamanca e, pelo que sabia ficara, desde então ligado a vários projectos de investigação.
Apaixonado e empolgado, com este último que lhe fora proposto, não hesitara em avançar. No entanto, consciente de que seria impossível realizá-lo sozinho, ocorrera-lhe, ser ela, a assistente ideal.
Conhecia o seu percurso académico e o profissional, até as ambições e, mais do que isso, adivinhara que a personalidade aparentemente serena e doce escondia a determinação e a coragem necessária para arriscar e com ele abraçar o desafio. Será que se enganara?!
Uma semana antes de lhe mencionar uma única frase sobre o assunto, já o seu nome tinha sido proposto à equipa de catedráticos responsável pelo departamento e aceite. Restara-lhe, então, convencê-la.

Estudar o pós-guerra no Camboja, a influência que a trágica guerra do Vietnã tivera sobre a população e a reconstrução da própria sociedade... era aliciante.
Do pouco que sabia, o país tinha sido no passado um importante império khmer. A edificação da magnífica cidadela de Angkor Ton datava do apogeu desse período e seria precisamente lá, onde se verificava o expoente máximo do turismo cambojano que iniciariam a pesquisa.

Nos últimos dias tentara absorver o máximo de conhecimento sobre o território que se lhe afigurava demasiado hostil para ser real. A sede de saber impelia-a a assistir incontáveis filmes e documentários, a ler qualquer registo histórico do que era passado e presente e até a realizar inúmeras pesquisas na internet.
A imagem das minas terrestres sobrevoava a sua mente ininterruptamente.
Quantos anos demorariam ainda para que não restava uma única?! Cinquenta... sessenta?! Acreditava-se que seria um longo e interminável século.
Suspirou enquanto recuperava fragmentos do que lera sobre o assunto. A guerra... o genocídio, as minas... a opressão e, agora, a precária estabilidade política, condenavam aquele povo irremediavelmente a níveis horripilantes de pobreza.
Dos onze milhões de habitantes, oitenta por cento estavam em zonas rurais e dedicavam-se à agricultura. Acreditava que seriam estes, a grande massa populacional, que estava em perigo iminente e também aqueles que ditavam os tão preocupantes níveis de analfabetismo e turismo sexual.

Afonso alertara-a para os perigos que correriam se não se restringissem a cumprir a orientação dos guias e para a ofensiva realidade com que se defrontariam.
Adultos e crianças mutilados eram vistos por toda a parte e mesmo passado tantos anos o peso da opressão ainda era sentido. Os turistas limitavam-se a percorrer as bonitas cidades de Siem Reap e Phnom Penh, a capital. O perigo espreitava a cada passada dada para lá das cidades e das estradas. Por mais fascinantes que se afigurassem as florestas tropicais havia que resistir à tentação. Qualquer passo em falso poderia ser fatal.

- Vamos beber um café?! – sorriu timidamente à expectante Matilde.

- Vamos... mas promete-me que não tomas nenhuma decisão precipitada.

- Prometo. Nunca o faço. – a voz de Catarina assumiu um tom grave e ambíguo.

- Também não penses de mais! – retorquiu-lhe efusivamente a amiga.

O bom humor imperava apesar de pairar no ar uma inflamada tensão.

A mente de Catarina fervilhava de ideias e imagens. Os pais, os amigos, o gato... até a bicicleta, a praia, o carro, ou o café da manhã junto ao Tejo a fizeram sentir uma antecipada sensação de saudade.
Noventa dias... afinal, seriam apenas três meses num país distante... com uma realidade que a atingia e sensibilizava como nenhum outro.

Algo nas suas entranhas vibrou.
Por mais que lutasse contra si própria sabia que não tinha como recusar e, ante esta sentença que o seu espírito lhe ditava, a latente força interior foi expelida sobre a forma de destemidas palavras:

- Sabes que mais?! Vou aceitar!

A partir daquele momento tudo ocorreu num ápice. Poucos dias depois a licença sem vencimento tinha sido entregue e aceite, a viagem estava reservada e informadas as pessoas que lhe eram mais queridas.

Catarina e Afonso haveriam de pisar o solo cambojano e, constatar a mística influência das monções, nos seus temperamentos habitualmente controlados.
Para já, a euforia que os contagiara era mais intensa que o habitual; ao ponto dos próprios amigos não lhe conseguirem ficar indiferentes.

O dia da despedida aproximava-se. Dali a dois dias entrariam no avião e nenhum livro, revista ou documentário os preparara para o que viveriam.

No dia anterior tinham saído com amigos comuns. Teria sido uma noite como tantas não fosse o clima de excitação e o facto de Catarina ter visto de relance Vasco.
Surpreendera a sua presença no preciso momento em que se ausentava.
A nostalgia que então sentiu contrastou com a alegria do momento.
Assaltou-a uma miscelânea de emoções e chocou-a olhar para ele como se não passasse de uma personagem de um qualquer filme ou um vulto numa fotografia desfocada.
Há meses que nada sabia de Vasco ou Juliana, nem sequer lhes tinha dedicado mais do que, um ou outro, esporádico segundo.

Olhou a linha do horizonte, sentada na areia dourada, sacudiu a densa melena que lhe envolvia o rosto e quedou-se imóvel a aguardar os pensamentos que se seguiriam.

Quase sentia pena de Juliana a quem a vida, os desgostos e a frustração transformaram de forma tão negativa. Acreditava que a sua essência não seria tão má como aparentava mas a falta de princípios era demasiado marcante para ser ignorada.
Suspirou tomando consciência de que aquela mulher nunca mudaria e jamais seria verdadeiramente feliz.
E Vasco?!
Sorriu...
Muito demoraria até que aquele menino em corpo de homem se apercebesse que o mundo existia para lá do seu meio-metro quadrado mas o dia chegaria.
Esperava que fosse feliz tanto quanto ela o seria.
A nenhum dos dois guardava rancor mas do amor que, no passado, lhes dedicara também nada restava.
O tempo encarregara-se de lhe demonstrar que nada acontece por acaso...

Semicerrou os olhos e inspirou o ar puro, extasiada com o cheiro a mar, a vida, a esperança...
As recordações esfumaram-se como que levadas pelas ondas de espuma branca e no seu íntimo algo estremecia... docemente. O passado expirava.

Cercava-a uma tranquilidade sem limite quando a pressentiu que alguém se aproximava. Ergueu o rosto vagarosamente...

Há anos que se conheciam mas naquele instante parecia-lhe que o via pela primeira vez: Os traços exóticos do rosto, o andar pausado, o cheiro inebriante da água de colónia e aquela vincada personalidade...
A inesperada consciência do homem que era provocou-lhe uma estranha e embriagante excitação. Tão possante quanto tentadora!

- Afonso...

Sorriram... Nenhum dos dois poderia continuar a esconder aquela certeza que brotava do mais profundo das suas almas: Depois daquela viagem aguardava-os um novo e sensual rumo...

A centelha do amor principiara a renascer das cinzas...

(Continua...)