segunda-feira, março 14, 2005

61. Música de outros tempos



O som dos Beatles invade o café...
Pedro, de olhos semicerrados, é envolvido por uma nostalgia que não admite e não percebe. Aquela música, desde há muitos anos, que o recorda de Ana. Pouco importam os muitos dias que tenham decorrido, desde a última vez que a viu, a imagem dela continua demasiado presente para que a ignore. No entanto contam-se, pelos dedos da sua mão, as vezes que de facto a vira.

O passado ressurge... na forma abstracta de um relampejar da memória.

Os seus pais possuíam, na altura, um pequeno café na Sobreda da Caparica. Era frequente ir ajudá-los, depois das aulas ou nas férias.
No Verão longínquo de 1990, valiam-lhe as visitas dos amigos para animarem as suas tardes. A Sobreda, apesar de ficar perto da praia, não era assaltada pelos veraneantes e os clientes eram os de sempre. Até que num fim de tarde, quando o sol se preparava para dar lugar à lua, lá estava ela... sentada numa das mesas, acompanhada por outra rapariga. Talvez uma amiga. Supusera, naquele instante.

Pedro recorda-lhe a voz doce, o riso cristalino, os caracóis ondulantes, os gestos femininos... a graça de uma menina que começa a ser mulher. Cativara-o, a ele que, aos 17 anos, só pensava em futebol e praia.
A uma primeira troca de olhares sucederam-se outras. Os dias decorreram...
Soubera, entretanto, que a amiga era, afinal, a irmã. Disse-lho a mãe.

Sorri... perdido no enredo com que a mente o brinda.

Sempre que Ana se aproximava parecia que as palavras o abandonavam e isso incomodava-o. A verdade é que, gostaria de ter falado descontraidamente com ela, como a mãe... mas o bater descompassado do coração impedira-o.
Estava apaixonado. Essa era a realidade e tudo em si o havia denunciado. Perguntou-se se haveria alguém que não o tivesse percebido.
Os pais mal a viam chegar trocavam olhares cúmplices enquanto lhe diziam para ir ver o que as meninas queriam. Como se ele não soubesse... Dois cafés e uma água do Alardo. Nunca chegou a perceber porque tinha, ela, a fixação por aquela água... actualmente quase fora do mercado português, por causa de uma qualquer contaminação detectada há 6 ou 7 anos.

Passaram-se treze dias... Chegou o décimo quarto e aquele em que, finalmente, conseguiu reunir a coragem suficiente para pronunciar mais que duas palavras... Convidou-a para beber outro café, quando ele saísse...
Ana sorrira. O rosto levemente ruborizado denunciava que o convite dele a afectara de algum modo. Ao contrário do que esperava, recusou-o e murmurou, timidamente, um adeus quase inaudível.
Emoções tumultuosas assaltaram-no enquanto a observou a subir a rua, rumo a uma casa que ele não sabia onde ficava. Sentira-se ferido... rejeitado.

O pior estava para vir...

Os dias que se seguiram passou-os numa ansiedade tal que beirava a obsessão e, em vão tentara descobrir quem era Ana. Ela esfumara-se como se fosse um fantasma. Ou um sonho. Ou uma miragem...

Adeus... – o eco da sua voz ainda ressoava dentro dele.

Nunca mais a vira desde aquele dia em que, ao som de uma melodia dos Beatles, lhe lançara um último olhar... no entanto a imagem dela em nenhum momento o abandonou.

Continuar a recordar tudo isto... parece-lhe uma infantilidade. Passaram-se 15 anos. Provavelmente estará casada e terá, um ou dois, filhos.
Por vezes, tenta imaginá-la envelhecida e sem aquela aura que a tornava tão distinta e bela. O esforço é infrutífero. A sua mente apenas lhe devolve o desenho de traços suaves e um sorriso que...

Onde andará Ana?

Talvez tão perto dele que se o soubesse estremecesse...

Talvez.... a escassos quilómetros, a recordar-se dele, uma vez ou outra, no silêncio de uma casa que só ela habita. Quantas vezes se terá perguntado, como ele, porquê relembrar aqueles, breves, quinze dias de férias... Ou porquê continuar, a folhear as páginas amarelas de uma qualquer lista, à procura de um número de telefone que nunca marcaria... mas que gostava de conhecer... como se isso lhe provasse que aqueles momentos tinham sido realidade.
Que diria Pedro se soubesse que Ana voltou à Sobreda mas não teve coragem de procurar por ele... não fosse a magia daqueles instantes, inocentes e únicos, se desvanecer.
Na verdade... seria desconcertaste se descobrissem que, no mais profundo das suas essências, aquele quinhão do passado tinha sido bem mais do que uma troca de olhares, entre dois adolescentes.

Mas que sei eu...?! Ana e Pedro, são criações da imaginação enquanto ouço Beatles... sentada num dos aconchegantes cadeirões do Cup&Cino.
Saboreio um “Triestino” e o aroma do café recorda-me, com alguma nostalgia, um outro Pedro... ou João... ou Nuno...ou seja lá o nome que tiver! Um outro alguém, que terá cursado o rumo dos seus dias num efémero segundo da minha vida e, do qual há muito não sei o paradeiro... por nem sequer me recordar onde fica o café onde estarrecida contemplava o seu sorriso...

Pouso a caneta durante uma breve fracção de segundos... O empregado aproxima-se...

Será que têm água do Alardo?!

Sorrio...

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