domingo, novembro 28, 2004

10. Não chores (...) aconteceu." Gabriel Garcia Marquez



O dia amanheceu triste...
O céu carregado e o vento, indisciplinado, a atiçava-a de forma leviana. Ora lhe despenteava os caracóis dourados, ora lhe levantava a ponta do vestido ou, simplesmente, a empurrava de forma pouco confortável ao atravessar a movimentada rua.

Era Setembro... o Verão findava!

9:05 estava atrasada!!
Como sempre o levantar apressado!
A habitual correria para entrar no 44 quando, o amarelo autocarro, já se preparava para arrancar da paragem e, depois o atalho pelo Parque Eduardo VII para subir os incontáveis degraus até ao escritório... já muito depois da hora desejada!
E o pequeno almoço?! Voltara a esquecer-se de parar na pastelaria da esquina para comer alguma coisa.
O estômago dentro de duas horas estaria possesso a reclamar o malfadado esquecimento.
Que a esperaria naquele dia?!

Trabalhava naquele edifício há cerca de seis meses e estava contente com o trabalho que desenvolvia. Finalmente, após uma longa espera conseguia a almejada função... coordenar a formação de uma empresa de média dimensão mas que há muito marcava a sua posição na área das novas tecnologias.
Era tida como uma mulher bonita, algo solitária e distante, mas bastante ciosa das suas responsabilidades.
Respeitada e contidamente acarinhada por todos tinha consciência que gerava alguma curiosidade. Aparentemente ignorava-o.
No final da tarde sentia sobre si olhares curiosos à espreita como que à espera que algo tenebroso sucedesse mas... ao invés de lhes retribuir com agressividade o olhar, um ténue sorriso apareceu no seu rosto... Já nada daquilo a incomodava!
Saía do trabalho com a sensação de missão cumprida, ansiosa por meter a chave na porta e aterrar durante cinco minutos no conforto do seu sofá. Gostava da sensação que aquela casa lhe dava... de profunda calma. Aquele era o seu mundo privado... ainda que algo no seu intimo persitia em lhe recordar que em tempos tinha sido diferente...

A vida reservara-lhe uma grande surpresa!!

O lento passar do tempo encarregara-se de cicatrizar as feridas e de a ajudar a restabelecer-se da avalanche de sofrimento que tomara conta dos seus dias. Ainda acordava a meio da noite com a fronte repleta de gotinhas de suor e os olhos turvos alterados pelas lembranças que lhe assaltavam a mente durante o sono mas dentro de si renascia a esperança nos dias que despontarão...

O dia foi-se esvaindo num ápice e quase não teve tempo de se lembrar do pequeno almoço por tomar ou mesmo que engolira um iogurte a meio da tarde para enganar a tensão arterial. Estava a descuidar a sua saúde mas o trabalho, nos últimos tempos, havia sido tanto que a absorvia por completo.

19:55 Olhou ansiosa pela janela.
Num acto impensado, impulsionado talvez pelo isolamento em que vivera os últimos meses, combinara encontrar-se com Francisco no final do dia. Faltavam 5 minutos e da janela da sua sala via-o parado do outro lado da rua. O cigarro na mão, o olhar pousado numa criança que brincava no parque e o corpo encostado displicentemente no carro.
Era um homem que possuía uma beleza invulgar que em nada tinha a ver com os figurões das capas de revistas demasiado abonecados. Que idade teria? Nunca o soubera mas supunha que rondasse os trinta e dois.

20:10 Estava atrasada!! Sorriu. Atrasar-se estava a tornar-se um hábito.
Desceu as escadas apressadamente enquanto vestia o casaco e mesmo sem querer voltou a recordar o malfadado dia...
Não voltaria a suceder. Era o Francisco quem a aguardava.
Atravessou a rua ao mesmo tempo que no seu rosto se abria um tímido sorriso.

-Olá! ...estou atrasada!
-Estás...

Aquelas primeiras palavras murmuradas como se fossem uma confidência marcaram o início de uma nova fase na vida dela, em que não havia margem para perder os seus preciosos segundos a relembrar a interpelação fatídica:

-Você é que é a mulher do amante da minha esposa?!

Era passado e enquanto ia tecendo estas considerações olhava para o homem a seu lado.
Durante meses recebera os seus telefonemas com alguma reserva e quando respondia ás mensagens que se iam acumulando no seu telemóvel tinha sempre o cuidado de manter alguma distância. Nos últimos dias, porém, sem que se desse conta do porquê algo mudara e o resultado final era que ali estavam eles.
Disfarçadamente olhou para ele.
Gostava do seu tom de voz, da doçura com que a olhava e do diálogo inteligente com que a brindava.
O futuro era uma incógnita mas naquele instante sentia-se em paz consigo, com a vida e com as pessoas que a cercavam.
O vento da manhã como por arte de magia cessara e as folhas das árvores há muito que quase não balançavam. A calma reinava e a noite foi avançando marcado pela cumplicidade que nascera naturalmente entre eles. Descobriram gostos comuns, defenderam ideais divergentes e no fim afinal o bom humor imperava.

23:59 Entrou na casa, olhou para o sofá saudosa e sentiu-se como se fosse a gata borralheira. Chegara um minuto antes da meia-noite.
Entrou na cozinha, fez café e com a taça fumegante sentou-se por fim no companheiro de todas as noites. Estava feliz.
Como dissera Gabriel Garcia Marquez:

"Não chores porque terminou sorri porque aconteceu".

Afinal, nem tudo tinha sido mau. Antes de descobrir a traição fora feliz e hoje, amadurecera... Era o produto fiel de quanto vivera! Conhecera alguém e voltara a descobrir o prazer de rir a dois…

Os olhos começaram a fechar-se. Começava a adormecer mas não sem se questionar... como seria o dia seguinte?!
Um ténue sorriso persistiu no seu rosto mesmo quando o sono a envolvera há muito...

...a esperança renascera no seu intimo!!

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