quinta-feira, abril 21, 2005

78. O livro de cabeceira



Solto os dedos sob o dicionário e com um olhar enlevado admiro as páginas amarelecidas deste companheiro de viagem. Se me perguntassem qual era o meu livro de cabeceira seria este velho e pesado aglomerado de folhas que nomearia, para espanto de quem o ouvisse. Quantas vezes o abri ao acaso e me quedei perdida no tempo numa emocionante descoberta como quem percorre os trilhos desconhecidos de uma qualquer expedição. Ao contrário do que seria credível foi desta forma que apreendi o significado de palavras como hipocrisia, maledicência, xenofobia, ou ainda, júbilo, fleuma, ventura...
Hoje, muitas horas depois de ter escrito aquele conto que ficará durante algum tempo a fermentar antes de ser lido por mais alguém, vi-me a braços com um dilema: o que vou escrever?! Olhei a capa vermelha do meu amigo e sorri-lhe com a certeza de que ele me ajudaria. Foi assim que, de página em página, o texto foi surgindo e voltei a relembrar os irreverentes tempos de adolescente.
Nunca gostei de calão, dificilmente virei a gostar, mas aos quinze anos era frequente “escapar-me” o vulgar “porra”. Recorria a ele para manifestar o enfado e valeu-me a repreensão da, então, professora de português. A timidez daquela vez não me impediu de ripostar e de referir que “porra” não era calão. A definição que constava no dicionário referia que o termo era sinónimo de moca, porro, porrete... quanto muito, irra. Quando concluí, sentada na velha cadeira de madeira, encolhi-me envergonhada. Responder ao professor não era bonito nem de boa educação. Esperei de rosto vermelho nova censura mas, ao invés disso, fui brindada com um sorriso.
- Tens razão, Maria! Mas por vezes as palavras têm outros significados e, aquilo que pronunciamos sem maldade poderá ser interpretado incorrectamente. A decisão é tua... mas de futuro preferia que não voltasses a dizer isso.
- Sim, senhora professora... – respondi, agora sim timidamente.
O episódio ficou na memória e contribuiu, em muito, para que tenha normalmente cuidado com as palavras. O português pode, por vezes, ser muito traiçoeiro!

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