quinta-feira, abril 14, 2005

74. Crise...



O olhar queda-se imóvel sobre a encruzilhada de letras e linhas impressas no jornal, enquanto no seu íntimo a revolta ganha forma. Suspira e quase desiste de fixar os insolentes anúncios de emprego.
Há meses que abre o jornal expectante mas nada de novo é publicado naquelas cinzentas páginas. Ordenados base, altos lucros, condições aliciantes e possibilidade de carreira... a esses mal presta atenção. Para quê se são palavras escolhidas a dedo para esconder degradantes situações de trabalho precário?!
Afasta por fim os olhos esverdeados do papel salpicado de caracteres e observa os rostos sisudos dos que a rodeiam. Um casal discute baixinho... um senhor, de idade avançada, debruça-se sobre um livro de páginas amarelecidas e, mais além, dois jovens desabafam sobre a incompetência deste, a inércia daquele... Inês encolhe-se no desconforto da cadeira de madeira e, abstraindo-se da realidade dos dias que correm, imagina-se a trabalhar no departamento de formação de uma qualquer empresa. Ali fica, envolvida em sonhos, um quarto de hora quando sobressaltada se apercebe que lhe perguntam as horas. O interpelador era o leitor compenetrado daquele livro que já vira melhores dias...
13:50... Quase sem se aperceber o tempo passara. Tinha que regressar ao trabalho... sem a esperança de melhores dias!
Inês é uma, entre muitas, das pessoas que neste país se debatem com a insatisfação profissional, sem conseguir antever um rasgo de luz. Não fosse o reconfortante carinho de amigos e familiares a sua vida seria simplesmente frustrante. Assim... é no amor, na amizade, na verdade e na lealdade que encontra o mote dos seus dias! Talvez por isso se considere afortunada...
Diz-se que o país está em crise económica... mas a ela parece-lhe que a crise vai além disso. Foi acompanhada por este pensamento que alcançou a porta do prédio onde trabalha... e bem a tempo de ver o Dr. Carlos afastar o olhar de uma criança, suja e esfomeada, que se lhe dirigiu.
No seu silêncio descontente insurgiu-se perante semelhante atitude. Sem coragem de subir as escadas e, também ela, ignorar o tímido pedido da menina perguntou-lhe:
- Tens fome?
- Tenho... hoje só comi uma sopa que o senhor do “Tacho” me deu.
Entraram as duas no café que ficava ali mesmo ao lado. Era cliente habitual daquele pequenino estabelecimento e o Sr. João quando a viu sorriu...
- Não diga mais nada... que eu já sei o que me vai pedir.
- Obrigada, Sr. João. Eu ás seis pago-lhe.
- Vá descansada.
Um sorriso espontâneo abeirou-se dos seus lábios enquanto subiu apressadamente as escadas. Estava atrasada cinco minutos mas feliz...
A crise económica não explica a frigidez do coração nem o latente egoísmo de algumas, demasiadas, pessoas!

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