terça-feira, novembro 01, 2005

97. Os laços e as sombras ( III )

- Não podes recusar! – Repetira-lhe Matilde

Perante o ar aparentemente indiferente de Catarina insistiu:

- Quantas vezes te ouvi dizer que se a oportunidade surgisse não a recusarias. Há quantos anos esperavas por isto?!

Encolheu os ombros e rodopiando sobre si própria olhou pela vidraça da janela.
O dia amanhecera estranhamente calmo, sem que pudesse adivinhar o emaranhado de indecisões que a levariam quase à exaustão, horas mais tarde.
Se o convite tivesse surgido há um ou dois meses teria aceite sem hesitar mas, naquele espaço de tempo, muita água correra debaixo da imponente ponte pombalina.
A copa das árvores balançava, suavemente, abrigando do sol meia-dúzia de barulhentos
pardais, animados frequentadores do parque.
Suspirou e encolheu os ombros, remetendo-se a um pesado silêncio.
Sentia-se numa encruzilhada e tinha por hábito escolher o trilho mais hostil. Os desafios sempre tinham sido sedutoramente estimulantes e este apresentava-se grande de mais para ser recusado. Essa era a verdade.
Aceitá-lo revelar-se-ia no concretizar de um sonho.

O convite surgira pela mão de um conhecido de longa data, também ele sociólogo.
Afonso fizera o doutoramento na Universidade de Salamanca e, pelo que sabia ficara, desde então ligado a vários projectos de investigação.
Apaixonado e empolgado, com este último que lhe fora proposto, não hesitara em avançar. No entanto, consciente de que seria impossível realizá-lo sozinho, ocorrera-lhe, ser ela, a assistente ideal.
Conhecia o seu percurso académico e o profissional, até as ambições e, mais do que isso, adivinhara que a personalidade aparentemente serena e doce escondia a determinação e a coragem necessária para arriscar e com ele abraçar o desafio. Será que se enganara?!
Uma semana antes de lhe mencionar uma única frase sobre o assunto, já o seu nome tinha sido proposto à equipa de catedráticos responsável pelo departamento e aceite. Restara-lhe, então, convencê-la.

Estudar o pós-guerra no Camboja, a influência que a trágica guerra do Vietnã tivera sobre a população e a reconstrução da própria sociedade... era aliciante.
Do pouco que sabia, o país tinha sido no passado um importante império khmer. A edificação da magnífica cidadela de Angkor Ton datava do apogeu desse período e seria precisamente lá, onde se verificava o expoente máximo do turismo cambojano que iniciariam a pesquisa.

Nos últimos dias tentara absorver o máximo de conhecimento sobre o território que se lhe afigurava demasiado hostil para ser real. A sede de saber impelia-a a assistir incontáveis filmes e documentários, a ler qualquer registo histórico do que era passado e presente e até a realizar inúmeras pesquisas na internet.
A imagem das minas terrestres sobrevoava a sua mente ininterruptamente.
Quantos anos demorariam ainda para que não restava uma única?! Cinquenta... sessenta?! Acreditava-se que seria um longo e interminável século.
Suspirou enquanto recuperava fragmentos do que lera sobre o assunto. A guerra... o genocídio, as minas... a opressão e, agora, a precária estabilidade política, condenavam aquele povo irremediavelmente a níveis horripilantes de pobreza.
Dos onze milhões de habitantes, oitenta por cento estavam em zonas rurais e dedicavam-se à agricultura. Acreditava que seriam estes, a grande massa populacional, que estava em perigo iminente e também aqueles que ditavam os tão preocupantes níveis de analfabetismo e turismo sexual.

Afonso alertara-a para os perigos que correriam se não se restringissem a cumprir a orientação dos guias e para a ofensiva realidade com que se defrontariam.
Adultos e crianças mutilados eram vistos por toda a parte e mesmo passado tantos anos o peso da opressão ainda era sentido. Os turistas limitavam-se a percorrer as bonitas cidades de Siem Reap e Phnom Penh, a capital. O perigo espreitava a cada passada dada para lá das cidades e das estradas. Por mais fascinantes que se afigurassem as florestas tropicais havia que resistir à tentação. Qualquer passo em falso poderia ser fatal.

- Vamos beber um café?! – sorriu timidamente à expectante Matilde.

- Vamos... mas promete-me que não tomas nenhuma decisão precipitada.

- Prometo. Nunca o faço. – a voz de Catarina assumiu um tom grave e ambíguo.

- Também não penses de mais! – retorquiu-lhe efusivamente a amiga.

O bom humor imperava apesar de pairar no ar uma inflamada tensão.

A mente de Catarina fervilhava de ideias e imagens. Os pais, os amigos, o gato... até a bicicleta, a praia, o carro, ou o café da manhã junto ao Tejo a fizeram sentir uma antecipada sensação de saudade.
Noventa dias... afinal, seriam apenas três meses num país distante... com uma realidade que a atingia e sensibilizava como nenhum outro.

Algo nas suas entranhas vibrou.
Por mais que lutasse contra si própria sabia que não tinha como recusar e, ante esta sentença que o seu espírito lhe ditava, a latente força interior foi expelida sobre a forma de destemidas palavras:

- Sabes que mais?! Vou aceitar!

A partir daquele momento tudo ocorreu num ápice. Poucos dias depois a licença sem vencimento tinha sido entregue e aceite, a viagem estava reservada e informadas as pessoas que lhe eram mais queridas.

Catarina e Afonso haveriam de pisar o solo cambojano e, constatar a mística influência das monções, nos seus temperamentos habitualmente controlados.
Para já, a euforia que os contagiara era mais intensa que o habitual; ao ponto dos próprios amigos não lhe conseguirem ficar indiferentes.

O dia da despedida aproximava-se. Dali a dois dias entrariam no avião e nenhum livro, revista ou documentário os preparara para o que viveriam.

No dia anterior tinham saído com amigos comuns. Teria sido uma noite como tantas não fosse o clima de excitação e o facto de Catarina ter visto de relance Vasco.
Surpreendera a sua presença no preciso momento em que se ausentava.
A nostalgia que então sentiu contrastou com a alegria do momento.
Assaltou-a uma miscelânea de emoções e chocou-a olhar para ele como se não passasse de uma personagem de um qualquer filme ou um vulto numa fotografia desfocada.
Há meses que nada sabia de Vasco ou Juliana, nem sequer lhes tinha dedicado mais do que, um ou outro, esporádico segundo.

Olhou a linha do horizonte, sentada na areia dourada, sacudiu a densa melena que lhe envolvia o rosto e quedou-se imóvel a aguardar os pensamentos que se seguiriam.

Quase sentia pena de Juliana a quem a vida, os desgostos e a frustração transformaram de forma tão negativa. Acreditava que a sua essência não seria tão má como aparentava mas a falta de princípios era demasiado marcante para ser ignorada.
Suspirou tomando consciência de que aquela mulher nunca mudaria e jamais seria verdadeiramente feliz.
E Vasco?!
Sorriu...
Muito demoraria até que aquele menino em corpo de homem se apercebesse que o mundo existia para lá do seu meio-metro quadrado mas o dia chegaria.
Esperava que fosse feliz tanto quanto ela o seria.
A nenhum dos dois guardava rancor mas do amor que, no passado, lhes dedicara também nada restava.
O tempo encarregara-se de lhe demonstrar que nada acontece por acaso...

Semicerrou os olhos e inspirou o ar puro, extasiada com o cheiro a mar, a vida, a esperança...
As recordações esfumaram-se como que levadas pelas ondas de espuma branca e no seu íntimo algo estremecia... docemente. O passado expirava.

Cercava-a uma tranquilidade sem limite quando a pressentiu que alguém se aproximava. Ergueu o rosto vagarosamente...

Há anos que se conheciam mas naquele instante parecia-lhe que o via pela primeira vez: Os traços exóticos do rosto, o andar pausado, o cheiro inebriante da água de colónia e aquela vincada personalidade...
A inesperada consciência do homem que era provocou-lhe uma estranha e embriagante excitação. Tão possante quanto tentadora!

- Afonso...

Sorriram... Nenhum dos dois poderia continuar a esconder aquela certeza que brotava do mais profundo das suas almas: Depois daquela viagem aguardava-os um novo e sensual rumo...

A centelha do amor principiara a renascer das cinzas...

(Continua...)

15 comentários:

Tino disse...

Maria,desde a tua forma de descrição,ao desenrolar da história passando pela investigação,necessária a que uma pessoa se sinta viajar nas palavras,o que tu escreves leva-nos a sentir como observadores no palco que a tua imaginação cria.
Esta é a minha opinião liberta!Seria sempre,mesmo que não gostasse tanto de ti.Um beijinho muito grande do teu miguinho:)

Maria disse...

Não sei se sorrir ou me zangar contigo, Tino! Sim!!
Porque sabes como escrevo, o trabalho que está por trás de cada enredo e porque reconheci em cada uma das tuas palavras o cunho da amizade, do carinho, do apreço...
Então porque me zango?! Porque me emocionei com tudo o que disseste, tal qual uma criança que é elogiada!

;)
É bom ter amigos como tu!

Um beijinho grande desta tua amiguita que, também, gosta muito de ti.

A. Narciso disse...

Um final com uma frase "poderosa". Bom trabalho!

Anónimo disse...

Óptima ... óptima surpresa ... são as melhores, as boas surpresas. Viagens, amizades, decisões ..... "futuros". Acho excelente a transposição da imaginação para a palavra, os pormenores, as evasões momentâneas.
Com a presunção de um estranho, ... conseguiste deixar-me surpreso!
Excelente !

nspfa disse...

Ai que saudades dos finais com o "The end" sobre um apaixonado beijo dos protagonistas… :-) eu, como sou rebelde, acrescento ao conto uma frase: "Vasco perdia assim Catarina para sempre… Mas, mesmo na infantil inocência de menino feito homem, Vasco sentia a estranha sensação de amargura de uma história que ficou por contar… de um amor que ficou por viver… Catarina, naqueles inevitáveis momentos de reflexão interior - onde tantas vezes procurava a clarificação do sentido da sua vida - também se questionava: terá Vasco sido um amor mal resolvido?! E como Catarina receava a intensidade dessas histórias… e conhecia tantas!"

Adorei o conto. Mais uma vez parabéns Maria.

Ps: ainda bem que Catarina não tem um blogue e escreve contos como a Maria… 90 dias é muito! :-)

Maria disse...

Obrigada. Alexandre. ;)
Um beijinho

Maria disse...

Ricardo,
antes de mais, sabendo que estou em falta contigo, quero dar-te os parabéns pelo Romance.
Em segundo lugar, quero agradecer-te por te manteres fiel a este meu cantinho.

Um beijinho para ti.

Maria disse...

cbricardo,
mais uma vez, cá estou eu, a agradecer-te as palavras que aqui deixaste.

Não gosto de finais tradicionais e como me cabia a mim decidir o rumo... nada me faria deixar o Vasco e Catarina juntos.

;)

Maria disse...

Luís, como o enredo foi por mim concebido permita-me que discorde das palavras que escreveu.

A Catarina, mais do que o Vasco, era a personagem principal... e dos fracos não reza a história. Ou pelo menos, não muito. :)

Acrescentar algo mais serviria apenas para apresentar um Vasco eternamente desolado o que não se coaduna com o trecho em que escrevi:

"Muito demoraria até que aquele menino em corpo de homem se apercebesse que o mundo existia para lá do seu meio-metro quadrado mas o dia chegaria.
Esperava que fosse feliz tanto quanto ela o seria"

Por outro lado... Catarina voltou a apaixonar-se...

"...a centelha do amor", não da paixão ou da ilusão.

Tenho fé que quando assim sucede não há "amores" do passado que ensombrem o futuro.
Adicionar qualquer palavra seria cair em contradição e dar azo a que fosse uma interminável história de amor. Não a pensei dessa forma...

Depois da Tempestade vem a Calmaria... depois da Chuva o Sol... depois de Vasco, Afonso!! A centelha do amor principiou a renascer das cinzas de uma simples paixão. O Amor é muito mais...

Agradeço, no entanto, o ter partilhado comigo (connosco) esse outro fim. Quem sabe num outro conto seja possível. ;)

lena disse...

esperei pelo final, envolvi-me nas tuas palavras, e penso mesmo que entrei na história, pelo menos consegui visualizar como se estivesse a assistir ao desenrolar de cada momento, parabéns, gostei de como acabaste o “renascer das cinzas”

beijinhos meus

lena

nspfa disse...

Maria, o meu mais sentido pedido de desculpas pela ousadia e impertinência do meu comentário anterior. Acho que me deixei embrenhar tanto no seu conto que não consegui perceber que Vasco tinha apenas sido uma paixão, das cinzas da qual nascera agora o verdadeiro amor.

As suas explicações, que lhe agradeço, ajudaram-me a entender melhor o enredo, o que me fez gostar ainda mais dele. O enredo de um conto tem uma finalidade, e a Maria transmitiu-a de forma perfeita. Fui traído pela minha má interpretação e é com humildade - e envergonhado - que mais uma vez lhe peço perdão pelo atrevimento.

Maria disse...

Obrigada, Lena.
É bom saber que quem possa ler o que escrevo se envolve com as palavras, imagina o desenrolar que está para lá das palavras e aprecia o momento.

Um beijinho

Maria disse...

Luís, não há um único motivo para pedir desculpa.

A verdade é que nunca gostei de dizer não concordo/concordo, não gosto/gosto... sem o justificar. Um velho hábito adquirido de pequenina quando assim me era exigido. ;)

Pensei que se explicasse melhor o enredo, num ou outro ponto, me faria entender de forma mais eficaz. Por isso, fiz a observação que leu.

Não pense que fiquei aborrecida com o que apelidou de “atrevimento”. Não poderia. O Luís, apenas, partilhou a imagem que reteve ou imaginou.

Assim sendo, pela partilha, pelas visitas que tem efectuado a este blog e pelas palavras que lhe tem dedicado:

Obrigada.

Daniel Aladiah disse...

Querida Maria Nunes
Então cá estou de volta para te ler após essa ausência.
Uma história bem contada na tua habitual linguagem cuidada. Olha, rima e é verdade.
Um beijo
Daniel

Maria disse...

Daniel,
fiquei contente por teres voltado ao EE, mesmo depois de me ter ausentado tanto tempo (quase dois meses).
Agradeço a visita, as palavras e deixo o convite para que voltes mais vezes.

Um beijinho
M