segunda-feira, dezembro 19, 2005

107. Os laços e as sombras ( VII )

- Era só o que me faltava, mas a burra sou eu!! Escolho-os a dedo!! – o acre das palavras ecoou para lá dos lábios.

O coração batia descompassado quando o ar frio da noite lhe crivou o corpo de incómodos arrepios. Apetecia-lhe caminhar, perder-se pelos passeios e aventurar-se na noite. Em vez de se dirigir para casa sujeitou-se ao acaso pela calçada deserta. Precisava espairecer e acalmar-se.

- Quem me manda ser otária? – o velho hábito de falar sozinha voltara em força. – Há-os para todos os gostos, de todos os tipos, uns mais desprezíveis que outros, mas todos, do alto da sua presunção, se julgam os maiores.
O telemóvel vibrou no interior do bolso da gabardina.
- Idiotas!! Calham-me sempre os piores. – suspirou sarcástica - Cordeirinhos?! Qual quê?! Despem a pele e não passam de imbecis.

As mãos tremiam-lhe quando segurou o pequeno aparelho. Estava sem paciência para falar com quem quer que fosse mas ao ver que era a mãe foi a razão que prevaleceu. Preocupá-la era a última coisa que desejava.

- Sim, mãe!?
- Olá, filha. Por onde anda a minha menina?!
- Estive no café do tio mas não me apeteceu ir já para casa. Acho que vou jantar no D. Rodrigo.
- Está tudo bem, querida?
- Está. Não te preocupes. Só estou chateada porque o Afonso apareceu no café. – após uma breve pausa continuou. – Mãe, segunda-feira vou à câmara. Está na hora de voltar ao trabalho.
- Tu é que sabes. Só quero que sejas feliz mas pensa bem. Não te esqueças que ainda não recuperaste completamente.
- Os zumbidos e as dores de cabeça já quase desapareceram. O resto só com o tempo… portanto não vejo porquê adiar mais.
- Tu é que sabes. – a voz da mãe soava apreensiva. A filha estava a tentar encontrar uma desculpa para não pensar no Camboja, em Afonso e na Matilde. – Não venhas tarde, está bem?!
- Está. Um beijinho grande e… mãe, gosto muito de ti e do pai.
- Eu sei. Nós também gostamos muito de ti.
Aconchegou o cachecol ao pescoço e enfrentou o silêncio citando baixinho um velho poema que lera algures.

- O silêncio é pó!
Pó que se abeira dos dias,
Se infiltra no coração,
Que como o ódio o corrói!
Não há música,
Não há vida,
Não há sonho,
Só o negrume, cerrado e frio!

O silêncio é pó!
Pó que não se vê,
Se insinua subtilmente...
Quanto muito, se pressente,
Na ponta do pensamento,
Na onda do momento...
Que não se vive
Que não se desfruta,
Que não se imagina, sequer!
Só se ignora, intenso e revelador!

O silêncio é... pó!
Pó... Pó... Pó!! E mais pó!
Tanto... Tanto que dá dó!


Já um sorriso se ensaiava no seu rosto quando o telemóvel voltou a perturbar-lhe os pensamentos. Catarina deteve-se de olhos esbugalhados a olhar para o pequeno écran, ao mesmo tempo que lutava contra o súbito pavor que a assaltara. O seu semblante estava branco como a cal.

- Isto não me está a acontecer!

Negou-se a ouvir aquela voz mas isso não impedia que o desconforto persistisse.
A noite afigurava-se cada vez mais sombria e nenhuma vivalma se avistava. Notou com estranheza que até o vento parecia ter cessado e sem forças para combater a sensação de estar a ser vigiada olhou em redor. Nada. Estava a ficar paranóica. Quase podia jurar que alguém a observava.

- Ohhhhh. – exclamou quando um gato vádio saltou do caixote de lixo.

Acelerou o passo, já faltava pouco para chegar.

- O silêncio é pó?!
Pó que te arrasta.
Pó que te afasta...
(Dos risos, da euforia, da magia...)
Que te transforma em fantasma
Como uma imagem irreal num plasma.
Pó!!

O silêncio é pó?!
Pó... que não tacteias
Mas que se infiltra nas tuas veias...
É ele que te reveste de um negro opressor,
Que te suga a essência e te aniquila!
Pó!!

O silêncio é... pó!
Pó... Pó... Pó!! E mais pó!
Tanto... Tanto que dá dó!

Pó!!


Um carro passou a alta velocidade, no mesmo instante que ouviu a porta de um outro a ser fechada vigorosamente.
Passou-lhe despercebido o vulto que se aproximou por trás dela, por entre as árvores do parque de estacionamento, junto ao restaurante.
O negrume debruçou-se sobre ela sem que se lhe visse o rosto e tudo o que pode notar foi a sombra a descer sobre si.

(Continua...)

Capítulos anteriores:
I II III IV V VI

12 comentários:

Anónimo disse...

Pois é Maria!
Não tens faltado aos treinos. Parabêns! Essa mistura com a poesia, a mim, Encantou-me! Espero que não te falte o tempo ... a mim, para "te" ler, não falta. Que este Sol de Inverno, faça fluir os teus encantos.
* O Silêncio também é "construção" e renovação !!!
Bjinho grande MN e Força!!!

nspfa disse...

A Maria já não deve poder com as minhas queixinhas, mas fico meio "danado" quando a página está a chegar ao fim e a história é interrompida na melhor parte!

Bolas que nunca mais vem o desfecho tão aguardado!:-)

Por outro lado é mais aliciante assim... aos poucos e poucos... mas esta espera está a ser dificil de suportar!Um dia destes faço uma birra.

Continuo deliciado com a maneira de escrever da Maria.

Para si, seus pais, irmã, sobrinho, max, Catarina, Vasco, Afonso e Sr.João, os meus sinceros votos de um Natal com o que ele tem de melhor e sem imprevistos indesejáveis a atrapalhar.

Maria disse...

joana cristal,
obrigada pelos elogios e fica prometida uma visita mais atenta ao teu blog assim que possa.

Um beijinho e, já agora, Boas Festas.

M

Maria disse...

cbricardo,
não tenho faltado aos treinos?! Ontem e hoje faltei mas vou tentar recuperar ainda antes do fim do ano. :)
Quero agradecer-te o tempo que dedicas a este meu cantito e desejar, desde já, que passes um óptimo Natal.

"* O Silêncio também é "construção" e renovação !!!"
...quando não é o silêncio total e carregado de sombras.
:)

Um beijinho

M

Maria disse...

Luís,
"queixinhas"?! Onde que não vi?!

O fim da história ainda vem longe... mas prometo tentar não demorar 15 dias a colocar o próximo capítulo.
:)

Como não poderia deixar de ser, agradeço-lhe os votos de Bom Natal e retribuo-os, a si e a todos os que lhe são queridos!

Um beijinho

Tino disse...

Estou a ver aqui algumas ideias postas em prática...tinhas razão! Até que resulta bem!hmmmmm,muito bem miguinha linda! Um beijinho fofo e grandalhão! :)

nspfa disse...

maria, acho que devia candidatar o seu blogue a fazer um programa de rádio. Pode consultar tudo aqui.

Eu adorava ver o EE na comercial.
tem mais informações no blogue do pedro ribeiro - dias uteis.Tem um link no meu SR.

ps: se já tinha conhecimento desculpe este comentário.

Daniel Aladiah disse...

Querida Maria Nunes
O mistério...
Boas festas!!!!
Um beijo
Daniel

lena disse...

"O silêncio é ... pó!
Tanto... Tanto que dá dó!"

é verdade Maria, embora muitas vezes diga que escuto o silêncio, quando não é pó

ficou o mistério agora, de quem será a sombra?

vamos esperar para ler

para ti Maria deixo-te um desejo de um Natal cheio de tudo o que desejas, misturado com alegria, paz, saúde, amor, felicidade ... tudo , pois mereces

beijinhos meus, muitos

lena

lena disse...

passei e em silêncio disse alto:

"-O silêncio é pó!
Pó que se abeira dos dias,
Se infiltra no coração,
Que como e ódio o corrói!
Não há música,
Não há vida,
Não há sonho,
Só o negrume, cerrado e frio!"

o silêncio às vezes dói!

espero que o teu Natal tenha sido o natal que desejavas ter

deixo-te um beijinhos, Maria, neste silêncio que não sinto pó!

lena

lena disse...

e com muito barrulho de garrafas de champanhe a rebentar, venho brindar contigo à passagem do ano, fazendo votos que 2006 concretize os teus desejos

Feliz Ano Novo

beijinhos muitos, menina linda

lena

Maria disse...

A todos os que por aqui passaram só posso agradecer os comentários que fizeram, deixar um beijinho e votos de um bom anito!

Beijinhos

Maria