sexta-feira, dezembro 16, 2005

106. Os laços e as sombras ( VI )

A taça fumegante de chocolate tinha acabado de ser colocada em cima da velha mesa de carvalho quando, cativa do calor que emanava, deixou que os dedos esguios tacteassem o barro.

- Que bom!! – suspirou.

A humidade pairava no ar, não tão densa como aquela que a impedia de respirar quando, no fim da tarde, se sentava no alpendre do bungalow onde vivera durante dois meses. Imaginou que regressava a Siem Reap.
As recordações chegavam-lhe numa catadupa de imagens, que de tão sobrepostas a confundiam. Procurou aclarar a memória e, muito embora o esforço se tenha revelado infrutífero, comprazia-a a doce sensação de ter sido muito feliz Então, porque tinha regressado mais cedo?!

- Porquê?! – o tom era irónico e mordaz – Estafermo!!

Os pensamentos ainda se atropelavam quando o viu entrar.
À meia-luz do canto onde se encontrava quase se percebiam as chispas que iluminaram, repentinamente, os olhos amendoados. A longa melena escondia-lhe a expressão transtornada e os lábios comprimidos.
Contemplou-o enquanto se aproximava por entre as mesas geometricamente dispostas e, contrariada, teve que admitir que o bom gosto de Afonso não o tinha abandonado. Sempre admirara a sua preferência por roupa de corte simples e cores pouco chamativas. O blusão bege contrastava com o castanho das calças e a camisola verde seco deixava antever o branco da t-shirt que usava rente ao corpo; o que contrabalançado com o moreno da pele, o cabelo escuro e os olhos verdes como esmeraldas, a impediam de ignorar a sensualidade que transpirava. Respirou profundamente e inebriou-a um suave odor a lavanda, plantas aromáticas e a madeiras exóticas. Conhecia muito bem aquela fragrância e, mais ainda, a pessoa que habitualmente a usava.

A presença daquele homem insultava-a e exacerbava as emoções que prometera, em vão, controlar.

- Tu!! Como te atreves!?

Amargo e trocista, o riso ecoou no mais profundo das suas entranhas.

- E porque não?! O lugar é público. – disse-lhe enquanto arrastava a cadeira e se sentava. – Não pensaste que poderias fugir tão facilmente, pois não?!

A dor estampada no rosto de Catarina atingiu-o como se um punhal se cravasse na pele.

- Desculpa... Gostava de falar contigo e juntos tentarmos resolver isto.

A revolta mais que a surpresa dominou-a e quando conseguiu falar, o som era gutural como o ribombar dos trovões.

- Não tens nada, absolutamente nada, para falar comigo. – quase sem tomar fôlego continuou. – Se tivesses vergonha, nem sequer estavas aqui.
- Enganaste, minha cara! – a paciência chegara ao limite. - Há assuntos que temos que esclarecer... e não penses que a tua agressividade me assusta, muito pelo contrário, diverte-me. Ficas patética com esse ar de donzela ofendida.

O silêncio pairou sobre eles durante o que pareceu uma eternidade.

- Não te imaginava tão cobarde. – acrescentou.

Catarina ergueu-se de rompante denunciando a intenção de se retirar mas Afonso foi mais rápido e segurou-lhe o braço delicado.

- Senta-te e não me obrigues a fazer algo de que me arrependa! – o tom cortante produziu nela o efeito contrário ao pretendido e, sacudindo violentamente o braço, libertou-se.
- Tu, também não me metes medo!!

Afonso viu-a rodopiar sobre si própria e sair pela porta, altiva e furiosa, quase a correr como se fugisse do diabo em pessoa.
Mais tarde ou mais cedo teria de aceitar conversar com ele. Não poderia esconder-se a toda vida.

- Tem que ter paciência com a menina.
- Mais do que aquela que tenho tido, Sr. João?! – o desânimo e a indignação eram evidentes.
- Os últimos meses não foram pêra doce e ela ainda não se tinha recuperado do primeiro golpe já o segundo lhe era servido a frio e o terceiro estava na fornalha.
- Sabe... não nego que sou culpado mas não do que ela me acusa. Se tivesse um pingo de consciência admitiria que se continuasse no Camboja o pior poderia acontecer. – suspirou como que a ganhar alento. – Uma semana antes de voltar, só por sorte não ficou à mercê de uma quadrilha ligada ao tráfico humano.
- Ela contou-me mas acha que foi só um susto.
- Um susto?! – escarneceu.
- Sim.
- Então digo-lhe mais… Foi bem mais que isso: foi um aviso! Com aquela gente não se brinca. O miúdo que nos alertou foi assassinado como se fosse um cão vadio, sem dó nem piedade e, mesmo eu, vi-me obrigado a viver na sombra até concluir o trabalho. Ela não tem noção...
- Pode até ser, mas...
- ... mas?! Não. Não há explicação para não me querer ouvir.
- Não pense assim. Está magoada, é o que é! Já viu o que ela passou?! Sonhou tanto com a pesquisa e foi o que foi... Depois o acidente que não recorda e como se não bastasse sente-se responsável pela morte daquela mulher. Já para não falar de quando o Afonso se encantou pela Matilde.
- Quanto a isso pouco posso fazer. – encolheu os ombros. – Foi uma estupidez, eu sei, mas pode estar certo de que não sou como o Vasco.
- Oh!! Esse passou por aqui há duas semanas. Vá lá, parece ter tomado rumo. – perante o arquear de sobrancelhas de Afonso, concluiu. – Está outra vez com aquela moça com quem namorou há uns anos e a coisa parece que vai pegar de vez.
- Não lhe perguntou por ela?!
- Perguntou mas não quer dizer nada. – limpou as mãos e, sem saber o que dizer, acrescentou - Acho que nunca pretendeu magoá-la mas a vida dá tantas voltas. O diabo anda sempre à espreita. Mas não se preocupe que a menina gosta é de si.
- Acha?!
- Quer um conselho? Não desista!

Afonso voltou a encolher os ombros enquanto passava a mão pelo cabelo em desalinho.

- Espero que sim, espero que sim, sr. João.

Era em momentos como aquele que o pobre homem se sentia velho e cansado. Não havia modo de perceber os jovens. Antigamente com 30 anos, tinha-se um trabalho de sol a sol e uma família a quem proteger. Era verdade que o orçamento deixava a desejar mas era-se feliz. Catarina tinha 32 anos, Afonso mais dois, ambos tinham vingado na vida, um a dar aulas numa universidade e o outro a trabalhar na câmara. O que lhes faltava?! Se calhar, acreditar na vozita do coração e enfrentar com coragem as dificuldades?! Aprender a lutar pelo que queriam e a dialogar?! Enfim, sabia lá ele... ou eles!

(Continua...)

Capítulos anteriores:
I II III IV V VI

14 comentários:

Anónimo disse...

Alo! Maria !!! Saudade !
Bem ... o que dizer !!!
"É Sempre, sempre, sempre .... em frente !!!"
Bjinho grande

Maria disse...

João,
digo e repito porque gosto realmente.
Quanto ao que aqui vês... é fruto do desejo de partilhar o que a imaginação vai ditanto nas chamadas horas "mortas".

Espero que continues a gostar.

Um beijinho e obrigada pelo que escreveste.

Maria disse...

cbricardo,
:)
confesso que me passou pela ideia não editar o resto da história porque tem vários capítulos e não sei se alguém a conseguirá ler até ao fim.
O verdadeiro enredo só agora vai começar.
:)

Beijinho

(É bom voltar depois de quinze dias a lutar contra o tempito!)

lena disse...

vou querer ler sim e estar atenta, escreves maravilhosamente,
ler-te é um prazer acredita
vou aguardar para ver se a vozita do coração fala mais alto

beijinhos para ti, menina linda já tinha saudades de te ver por aqui

lena

nspfa disse...

Também senti muito a sua falta nestes 15 dias, cheguei a pensar que tinha desistido de nos contar o resto da história da Catarina. Ainda bem que estava enganado e pelos vistos muitos outros episódios nos aguardam.:-)

Bom, parece que as coisas lá pelo Camboja não correram pelo melhor e o Afonso andou a fazer das suas. Alguma traquinice ele deve ter feito para deixar a Catarina naquela fúria. Resta esperar pelos próximos capítulos para perceber até que ponto a protagonista terá capacidade de perdoar mais uma desfeita. E logo agora… que a centelha do AMOR tinha principiado a renascer das cinzas…

Com o Afonso ou com o Vasco, ou com outro que possa ainda surgir da criativa imaginação da Maria, o que quero mesmo é ver a Catarina feliz. E acho que vamos ter direito a esse rebuçadinho… :-)

Mais uma vez os parabéns, um beijinho e até daqui a 15 dias.

Maria disse...

Lena,
Obrigada pela palavras de incentivo.
"Os laços e as sombras" é uma história de amor e desamor, de verdade e mentira, de força e fraqueza interior... de laços e de sombras que minam a felicidade.
No fim a ficção pretende apenas demonstrar que, por mais agreste que sejam os dias, é possível ser-se feliz.

Um beijinho
M

Maria disse...

Luís,
:)
não desisti...
Adianto que o inesperado está prestes a acontecer.

Um beijinho
M

Anónimo disse...

Olá Maria, não vou comentar nada sobres os laços e as sombras, mas só por agora, porque acho que o desenvolvimento vai trazer algumas surpresas ficcionarias e quem sabe na uma surpresa ainda maior com este belo trabalho ...

beijinhos
LM

Maria disse...

Luís (LM),
é bom ver-te de novo por aqui.
No fim quero o teu comentário sincero (como sempre!), combinado?!

As surpresas acontecem quando menos se espera... Vamos ver o que sucede com eles e com os laços e as sombras.
:)

Beijinho grande
IM

Tino disse...

Que maravilha! Continua!Continua! Imprime...ooopsss,esqueci-me de levar o resto da história comigo o fim de semana passado...temos que remediar isso! :) Um jinho grandalhão!!!!!! :)

Maria disse...

Tino,
eu reparei.:) Olha que dois!! Qual o mais distraído?!

Acabei de chegar de um passeio matinal junto ao Tejo e, depois de um par de horas a escrever sentada num banquito, o que te imprimi já está obsoleto! :)Primeiro porque já tenho novos capítulos e segundo porque a versão final vai sofrer algumas alterações.
;)
Beijinhos para o meu amiguito lindo!

Maria disse...

Anakin,
Agradeço-te as palavras e os regressos a este cantinho.

Reconheço a personagem que dá pelo nome de Anakin e também o estado de espírito que está intrinseco ao que escreves num outro cantinho... É verdade!

Anónimo disse...

Obrigado pelas tuas palavras no keimadela. Não tenho muito tempo para te ler neste momento (vida aterafada...natal :) mas acredita que quando tiver tempo vou ler tudo isto porque me pareceu muito interessante. bj Numenesse

Maria disse...

Numenesse,
;) Não tens que agradecer, gostei do que por lá encontrei.

Como eu compreendo a tua falta de tempo... :)

Quanto a leres o que tenho escrito vai certamente demorar. "Os laços e as sombras" é um romance e já tem alguns capítulos, dez para ser exacta.

De qualquer forma a porta fica aberta para uma futura leitura.

Beijinho

M