terça-feira, outubro 25, 2005

95. Os laços e as sombras ( I )




Um riso cristalino ecoou pelo vale enquanto pequenas gotas de suor deslizaram pelos contornos do rosto feminino. A roupa leve colava-se ao corpo moldando-se a cada curva delicada e sedutora...
Deitada na relva fresca que ladeia o pequeno riacho, Catarina, contemplou as nuvens que calmamente passavam; imaginou que se transformara numa e deixou que o pensamento flutuasse ao sabor do vento.
A caminhada matutina deveria ter esgotado toda a sua energia mas, ao invés disso, parecia ter actuado sobre si de forma revigorante.
Inspirou o ar puro e de um único movimento ergueu-se. Sentia, no seu íntimo, uma paz, doce e serena... como se tudo nela estivesse em profunda harmonia com a natureza que a cercava. O chilrear dos pássaros, o som de água a cair... o próprio vento... tudo a fascinava. Até o trilho que se estendia à sua frente, íngreme e irregular.
Sorriu-lhe, como se de um humano se tratasse, desafiando-o a fazê-la desistir.

Pé ante pé, a jovial jornada foi retomada.

O suspiro veio, involuntário e quase inaudível.

Por fim poderia permitir que a recém-terminada relação com Vasco lhe voltasse à lembrança. Estranhamente, tudo se afigurava como uma ténue recordação, breve e desfocada. Gostar dele tinha sido uma novidade, na vida de reclusão que tinha há anos. Saboreara esse sentimento com prazer e alegria. Agora sabia...!! Continuava a ter essa mágica capacidade de sentir!!
Com o fim prematuro do episódio os amigos esperaram lágrimas, revolta... tristeza mas nada disso viera. Tudo era alegria, serenidade e encanto. Ninguém jamais entenderia aquele ímpar estado de espírito! Só ela, a quem parecia tão fácil e banal controlar o coração. Vezes havia em que se questionava porque assim era. Porque se sentia sufocar a cada despertar... quando estendia a mão e aquele corpo quente a abraçava?! Porque se sentia enfraquecer a cada olhar partilhado?! A cada palavra dita?! A cada encontro?! Teria, realmente, gostado dele?! Gostaria ainda?! Quantas perguntas sem resposta com as quais não se preocupava, simplesmente porque não lhe apetecia desperdiçar o tempo em considerações que não a fariam evoluir!!
A verdade é que, para ela, o amor não passava de uma ilusão criada pelo homem para justificar a necessidade de não estar só! Para ela, a felicidade estava em momentos como aquele em que, tal como uma criança, corria pela vereda ladeada de giestas e urzes... Tudo o resto deturpava-lhe a visão... oprimia-a e tornava-a infeliz!
Sorriu... comparando-se a um felino que desfalece quando enjaulado! Ela era assim! Um ser que buscava prazer nas pequenas coisas da vida e amor nos olhares embevecidos da família e dos amigos. Isso bastava-lhe! Por enquanto...

Avistou o açude a uns metros de distância e quando, por fim, se aproximou da orla daquele, pequeno e paradisíaco, recanto não resistiu.
O lugar era isolado e perfeito para se aventurar a refrescar a pele húmida.
Como uma lebre, astuta e atenta, perscrutou o silêncio sussurrante da natureza. Despiu a roupa e submergiu na água cristalina.

Há muito que não se sentia tão livre... e tão feliz.
Inesperadamente, do mais profundo da sua essência, como que a contradizê-la, surgiu a imagem de Vasco e Juliana. Juntos...
Como pudera ser tão tonta?! Traída pela segunda vez por aquela mulher a quem chamara de amiga... ?!

Emergiu energicamente da água para, tal qual um exímio ser aquático, voltar a submergir.

Que se danassem todos!! Ela estava bem e se alguém perdera não fora ela. A força daquele pensamento esgotou-lhe o fôlego e, num único impulso, voltou à tona da água. Durante largos minutos quedou-se a boiar limitando-se a esvaziar o pensamento e deixar que o instinto a guiasse.

Esfriara. Chegara o momento de deixar de imaginar que de nuvem se transformara em peixe.
Infelizmente, tinha que voltar ao mundinho de sempre... onde as pessoas são por vezes demasiado egoístas, mesquinhas e... muito pouco inteligentes.
O rosto contorceu-se numa careta divertida, ao mesmo tempo que, se delineou um sorriso cínico nos lábios, habitualmente ternos. A vida era assim... que podia fazer!?

Pela segunda vez o mesmo pensamento voltou... Que se danassem todos!

Meia-hora depois, era com pesar, que retomava a caminhada e abandonava o cantinho de céu em que desfrutara a mágica sensação de não existir mais nada... que não ela e a natureza.

Regressava, exausta mas convicta de que dos dias sem data guardara, o melhor, a noção exacta de que passara por eles sem mácula.
Mais tarde ou mais cedo, a vida... ou os sonhos, ou tão-somente o destino, haveria de a recompensar das horas em que se esquecera de sorrir.

Mais tarde ou mais cedo... Um dia, talvez, já a espreitar o horizonte...

(Continua?! Talvez...)

7 comentários:

Maria disse...

;) Claro que sim... não faria sentido terminar o enredo sem enredo sequer haver.
Obrigada pela visita e pelas palavras.

Anónimo disse...

O açude faz-me lembrar um local que eu conheço perto de Figueiró dos Vinhos, escondido entre as Fragas de São Simão e o "que se dane" é óptimo, adequado às circunstâncias...de repente o teu texto fez-me lembrar a libertação que é fugir para as fragas...

Nuno Ferreira
25.10.05 - 1:46 am

Maria disse...

Nuno, sendo eu de Castelo Branco, onde existem muitos açudes e fragas, entendo muito bem a libertação a que te referes.

Seria impossível contar as vezes em que "fujo" até lá e saboreio o momento com deleite.

Um beijinho e obrigada pela visita... pelo comentário.

Anónimo disse...

“Deitada na relva fresca que ladeia o pequeno riacho, Catarina, contemplou as nuvens que calmamente passavam” e, induzido pela torrente de felicidade que lhe corria nas veias, deixa-se tomar pelo sono. Adormece serena... e deixa nos lábios um teimoso sorriso... sinal inequívoco da paz que conquistou....

Mas o sono dura pouco... Porque o seu companheiro de caminhada só precisou de minutos para investigar o território adjacente. Quando se decide a acordá-la pára e hesita perante a beleza da roupa fresca emoldurada no verde e o desconcertante sorriso nos lábios!

Impaciente, não resiste. Duas lambidelas melosas são suficientes. E Catarina acorda... e olha para o afável companheiro canino... um lindíssimo labrador retrevier... e compreende... e juntos continuam viagem... Qual dos dois mais feliz?!

Desculpe a ousadia, mas o quadro que descreve é demasiado perfeito e não resisti a introduzir nele o Max! A Catarina que me desculpe as lambidelas...

Parabéns pelo conto.
Que bom ter voltado e de punho afinado! Eu fiquei feliz.
Luis
25.10.05 - 4:57 am

Maria disse...

Gostei desse rumo que deu ao enredo, Luís.
Até porque apesar de saber que o labrador dos meus pais se chama Rex insisto em chamar-lhe Max.

Obrigada pela visita.

Um beijinho

Anónimo disse...

"Há muito que não se sentia tão livre... e tão feliz.
Inesperadamente, do mais profundo da sua essência, surgiu a imagem de Vasco e Juliana.... juntos... como que a contradizê-la...
Como pudera ser tão tonta?! Traída pela segunda vez por aquela mulher a quem chamara de amiga... ?!"

Maria é a primeira vez que te deixo um comentario a um dos teus exercicios de escrita, mas deixa-me, mais uma vez, congratular-te pelo teu prazer de escrita que para mim é simplesmente doce... vamos embora em frente no desafio que te fiz...

Luis Marques
25.10.05 - 9:40 pm

Maria disse...

Confesso que fiquei muito contente quando há pouco (duas ou três horitas) me deparei com o teu comentário.
Volto a agradecer-te o que escreveste e o apoio nestas lides.

Um beijinho

P.S.
Não sei bem como... a meia hora alargou-se. São 02h34m e a segunda parte do conto já está editada.
26.10.05 - 2:36 am