quarta-feira, outubro 26, 2005

96. Os laços e as sombras ( II )

O fim-de-semana findava como começara: lá fora a chuva teimava em cair.
Displicentemente recostado no confortável sofá, Vasco, susteve o fumo compacto, no calor dos pulmões cansados, permitindo que a nicotina o inebriasse. Olhou atentamente o cigarro e repetiu-se uma vez mais... tinha que parar de fumar.
O exagero tinha um motivo e ele não o ignorava.
O tabaco entorpecia-lhe os sentidos e ajudava-o a abstrair daquela sensação, de vazio e culpa, que não insistia em não o abandonar mesmo depois de...

Suspirou.

Porque insistia a sua mente em recordar a doçura, o cândido carinho, intenso e desprendido, daqueles olhos, daquele rosto e daquele corpo?!
Naquela manhã quando acordara o seu primeiro pensamento fora para ela, tão impulsivo e avassalador que, a sua respiração ficara entrecortada, o coração batera mais forte e a nostalgia não se coibiu de o abraçar devolvendo-lhe rastos de emoções bem menos deprimentes.
Na verdade fora um erro!! Um erro arriscar e, um erro fugir depois de o ter feito. Mais ainda, não ser forte o suficiente para resistir a instintos primitivos e básicos, traí-la e expulsá-la da sua vida sem que tivesse coragem para abrir o coração...

Depois dela mais nada... teria aquele mágico sabor a sonho e a vida.
Como tardara em perceber isso. E agora...?! Agora ela fugira-lhe por entre os dedos, tal qual areia ou água. Talvez para outros braços... Seria possível?!

Recordou-a. A rebeldia sensual que tanto a caracterizava atingiu-o como um soco no estômago vazio.
Angustiava-o saber que, afinal, perdera muito mais do que antes previra ou pressentira.
Juliana era apenas, um corpo longe de ser belo, um afago roubado na contagem imprecisa do tempo e da noite, numa daquelas horas em que, mais que emoções, é o destilar do álcool que o move.

Sacudiu a cabeça. Quem escolheria uma pedra de carvão se pudesse ter um diamante?! Apenas ele...

Rodopiou o copo entre as mãos.
O cigarro há muito que fora apagado no cinzeiro repleto de beatas.

Remoer o passado não mudaria o rumo dos acontecimentos, não a faria regressar ou o levaria até ela.

A culpa estava intrincada em cada poro da sua pele e envergonhava-se da cobardia que o manifestara.
Queria amadurecer, abandonar aquela irresponsável conduta de quem se deixa guiar em nome de um ego que de nada... se convertia em nada!
Queria libertar-se das amarras do que ficara perdido lá atrás, nos anos em que transformara a ilusão no seu porto de abrigo e fazer renascer das cinzas a esperança. No entanto, como se pode vencer o desânimo de quem não se atreveu a lutar e viveu as histórias que não leu mas que ouviu contar?!
Catarina... poderia ser apenas um nome sem rosto, sem alma nem coração... todavia era uma força viva que continuava a impregná-lo de emoções e sentimentos que não ousava nomear, por mais evidentes que fossem.
Suspirou. Talvez o tempo esbatesse a noção exacta do que se negara a aceitar... e ofuscasse a deprimente sensação de perda. Talvez acalmasse o coração e lhe devolvesse o ânimo... Talvez!
Semicerrou os olhos e quedou-se imóvel a contemplar um ponto indefinido da sala, numa espera monótona e incongruente com o mais profundo dos seus desejos. Que passassem os segundos, os minutos, as horas... que se apagasse a memória e se danasse tudo. Inclusive ele.

O Big Ben marcou o compasso. Passaram mais que horas... semanas... meses...
Rodeou-se de amigos para quem era uma espécie de rei. Vieram os primeiros e espontâneos risos, noites loucas em que o ritual se mantinha, sem que uma vez que fosse inibisse o corpo de se deixar seduzir pelo vulgar jogo de Juliana, e quase... quase acreditou estar a salvo daquela aura mágica, tão rara quanto uma pedra preciosa, que um dia o abraçara com verdade, com carinho... com amor...

O frio atenuara-se e, mesmo quando o negrume descia sobre a cidade, a temperatura era amena.
Aqui e ali, começava a observar-se a movimentação de pequenos grupos.
Naquela noite, reunira-se com os amigos de sempre num dos bares que ladeava a praia... O tédio da rotina instaurada e da vida sem qualquer delineado objectivo era insustentável. Esgotadas as forças já não tinha como continuar a ignorá-lo.
Olhou os rostos conhecidos que o cercavam. Sentiu-se como se os visse pela primeira vez ou se de repente as máscaras tivessem ruído. Enojou-o o que encontrou. Uma ou outra excepção era tudo o que lhe restava.
Ergueu-se da impessoal e desconfortável cadeira e encaminhou-se até ao bar.
Foi quando a viu...
O vestido branco moldado ao corpo bem torneado, o cabelo solto sobre os ombros protegidos pelo leve tecido de algodão e o rosto... O rosto tão doce e sereno como o recordava.
À distância bebeu-lhe o sorriso e as palavras que não ouvia mas adivinhava pelo, lento e sensual, movimento dos lábios.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo... Catarina...

Por breves instantes recuou no tempo. Imaginou-se a envolvê-la nos braços e a sentir o inebriante calor do beijo que tantas vezes fora partilhado... Quase sentiu as suas mãos a estreitar a delicada cintura e a sua respiração cálida, tão suave como uma carícia. Reviu-se a protegê-la dos olhares menos inocentes e a olhá-la com admiração.

Cerrou os olhos, impressionado com o rumo dos seus pensamentos, extasiado com o mar de emoções que o assaltavam e prostravam sobre terra a convicção de que nada restava...

Não... !!
O passado era passado...

Afastou-se sem que ela pressentisse a sua presença e, sem sequer questionar a sua atitude, encaminhou-se para a rua...
Fugir não era uma opção mas o recurso para sanar aquele mal que, tão ferozmente, o ameaçava.

Vasco vivia do ego das pequenas e fúteis conquistas, dos “amigos” que como abutres se abeiravam dele, das amarras ao passado em que sofrera e ao conforto de uma vida fácil onde bastava querer para ter.
Não passava de uma criança carente, sedenta de atenção, num corpo de homem. Um rei... sem reino, refugiado num castelo sem alicerces, construído no meio de nenhures.

Que poderia ele oferecer a alguém como ela?! Não a traíra já mesmo no calor da paixão? Ou teria sido apenas um desafio... que depois soubera não vencido?!

Há mistérios que o coração e a mente não poderão, jamais, descortinar.


(Continua? Talvez...)

16 comentários:

Maria disse...

Obrigada, Ricardo.

Espero que o fim que escrevi e, em breve, vai poder ser visualizado no blog, esteja de acordo com o restante enredo.

Maria disse...

Hoje alterei o sistema de comentários para o antigo porque estava com algumas dificuldades com o Haloscan.
A todos aqueles que viram os seus comentários desaparecer peço desculpa pelo inconveniente.
Alguns, os últimos, creio que são recuperáveis mas não os mais antigos.


Um beijinho

Maria

Anónimo disse...

Acho que aguardamos todos o desfecho da história… A Maria consegue prender o leitor nos seus contos, tal como conseguem nomes já consagrados. É para ler devagarinho, repetidamente e uma palavra de cada vez. Só para não perder nada… mesmo nada…nem o mínimo pormenor. Para não deixar de sentir, ou imaginar sentir, a mesma culpa, o mesmo pesar, o mesmo arrependimento e a mesma sensação de perda. É extraordinário, e mais uma vez os meus parabéns.Será um "happy end" à moda antiga, com Catarina e Vasco juntos e felizes para sempre, ou a moderna versão de deixar ao leitor o sabor um bocadinho amargo da indefinição?! A ver vamos… Talvez… ps: eu torço pelo happy end... 26.10.05 - 12:03 pm | #

Maria disse...

Obrigada, mais uma vez, Luís.O facto é que gosto de escrever, de delinear enredos e de me surpreender a mim própria com o desfecho... Mas não gosto de finais "à moda antiga". Nem dos modernos.

Anónimo disse...

olá Maria ganhaste mais um fã e ao contrario do comentario anterior prefiro um final menos real mesmo que seja triste ou menos convencional.na verdade estou encantado com a tua capacidade de escrever... fascinante
| 26.10.05 - 2:59 pm |

Maria disse...

Luís Marques,Ganhei um fã?! Só espero merecê-lo e manter este meu gosto por escrever como quem respira. Obrigada pelas palavras, pelas visitas e pelo apoio. Beijinhos

Anónimo disse...

Miguinha linda! Já não posso dizer que me surpreendas...já estou habituado,talvez por ter lido todos os teus textos...e há coisas que não mudam...um grande beijinho para ti,do migo que te adora muito***
| 26.10.05 - 10:29 pm | #

Maria disse...

:) Sempre o mesmo, Tino.
Tenho que começar a pensar num novo conto que te surpreenda. ;) E já agora, descobrir como acrescento 12 horas ao meu dia.


Obrigada pelas palavras e pelo carinho.

Um beijinho grande para ti.

Anónimo disse...

Bom regresso Maria! Aguardo pelo final da estória
27.10.05 - 1:54 pm |

Maria disse...

Obrigada, Alexandre.
Confesso que o fim não surgiu de modo tão rápido como o restante enredo... mas acho que muito em breve já poderá ser lido.
Um beijinho

fernando macedo disse...

como os outros que comentaram por aqui, fico também à espera do final... um beijo.

Maria disse...

;) O final será ainda hoje editado aqui.
Espero que gostes, a-bordo.

Um beijinho

Art&Tal disse...

sim...
gostava de lhe dizer mais mas...
...demasiado ornamento
nao fique aborrecida
talvez o defeito seja meu

Maria disse...

:) Aborrecida?! Claro que não... até porque respeito a opinião das outras pessoas.
Não temos que gostar todos de azul porque é a cor do mar... ou de imagens berrantes porque é o que está na moda...
;)

lena disse...

entrei e sentei-me a ler-te, perdi-me nas tuas palavras, entrei nelas e viajei no imaginários das emoções, saboreei cada momento, seja qual for o final desta história aguardarei impaciente
digo que és perfeita e surpreendente no que escreves, conseguiste prender-me a este conto, parabéns

fica com um beijinhos meu

lena

Maria disse...

Lena, quando li o teu comentário fugiram-me as palavras e apenas ousei um pensamento... uma pergunta: Escrevo realmente assim?!
Quando invento, não as palavras, mas os enredos, e me inspiro nas coisas mais básicas da vida o mote é sempre o mesmo... partilhar o sonho porque sem ele nada fará sentido.
Já me acusaram de não conseguir apresentar escritos negativos, frios, calculistas ou verdadeiramente tristes. Mas porque se terá que converter uma manhã de sol num dia cinzento?! Prefiro pensar que depois de cada tempestade vem a calmaria! Talvez por isso escreva assim... com o coração onde deveriam estar, unicamente, a mão e a caneta.

Obrigada.

Um beijinho

M