- Não podes recusar! – Repetira-lhe Matilde
Perante o ar aparentemente indiferente de Catarina insistiu:
- Quantas vezes te ouvi dizer que se a oportunidade surgisse não a recusarias. Há quantos anos esperavas por isto?!
Encolheu os ombros e rodopiando sobre si própria olhou pela vidraça da janela.
O dia amanhecera estranhamente calmo, sem que pudesse adivinhar o emaranhado de indecisões que a levariam quase à exaustão, horas mais tarde.
Se o convite tivesse surgido há um ou dois meses teria aceite sem hesitar mas, naquele espaço de tempo, muita água correra debaixo da imponente ponte pombalina.
A copa das árvores balançava, suavemente, abrigando do sol meia-dúzia de barulhentos
pardais, animados frequentadores do parque.
Suspirou e encolheu os ombros, remetendo-se a um pesado silêncio.
Sentia-se numa encruzilhada e tinha por hábito escolher o trilho mais hostil. Os desafios sempre tinham sido sedutoramente estimulantes e este apresentava-se grande de mais para ser recusado. Essa era a verdade.
Aceitá-lo revelar-se-ia no concretizar de um sonho.
O convite surgira pela mão de um conhecido de longa data, também ele sociólogo.
Afonso fizera o doutoramento na Universidade de Salamanca e, pelo que sabia ficara, desde então ligado a vários projectos de investigação.
Apaixonado e empolgado, com este último que lhe fora proposto, não hesitara em avançar. No entanto, consciente de que seria impossível realizá-lo sozinho, ocorrera-lhe, ser ela, a assistente ideal.
Conhecia o seu percurso académico e o profissional, até as ambições e, mais do que isso, adivinhara que a personalidade aparentemente serena e doce escondia a determinação e a coragem necessária para arriscar e com ele abraçar o desafio. Será que se enganara?!
Uma semana antes de lhe mencionar uma única frase sobre o assunto, já o seu nome tinha sido proposto à equipa de catedráticos responsável pelo departamento e aceite. Restara-lhe, então, convencê-la.
Estudar o pós-guerra no Camboja, a influência que a trágica guerra do Vietnã tivera sobre a população e a reconstrução da própria sociedade... era aliciante.
Do pouco que sabia, o país tinha sido no passado um importante império khmer. A edificação da magnífica cidadela de Angkor Ton datava do apogeu desse período e seria precisamente lá, onde se verificava o expoente máximo do turismo cambojano que iniciariam a pesquisa.
Nos últimos dias tentara absorver o máximo de conhecimento sobre o território que se lhe afigurava demasiado hostil para ser real. A sede de saber impelia-a a assistir incontáveis filmes e documentários, a ler qualquer registo histórico do que era passado e presente e até a realizar inúmeras pesquisas na internet.
A imagem das minas terrestres sobrevoava a sua mente ininterruptamente.
Quantos anos demorariam ainda para que não restava uma única?! Cinquenta... sessenta?! Acreditava-se que seria um longo e interminável século.
Suspirou enquanto recuperava fragmentos do que lera sobre o assunto. A guerra... o genocídio, as minas... a opressão e, agora, a precária estabilidade política, condenavam aquele povo irremediavelmente a níveis horripilantes de pobreza.
Dos onze milhões de habitantes, oitenta por cento estavam em zonas rurais e dedicavam-se à agricultura. Acreditava que seriam estes, a grande massa populacional, que estava em perigo iminente e também aqueles que ditavam os tão preocupantes níveis de analfabetismo e turismo sexual.
Afonso alertara-a para os perigos que correriam se não se restringissem a cumprir a orientação dos guias e para a ofensiva realidade com que se defrontariam.
Adultos e crianças mutilados eram vistos por toda a parte e mesmo passado tantos anos o peso da opressão ainda era sentido. Os turistas limitavam-se a percorrer as bonitas cidades de Siem Reap e Phnom Penh, a capital. O perigo espreitava a cada passada dada para lá das cidades e das estradas. Por mais fascinantes que se afigurassem as florestas tropicais havia que resistir à tentação. Qualquer passo em falso poderia ser fatal.
- Vamos beber um café?! – sorriu timidamente à expectante Matilde.
- Vamos... mas promete-me que não tomas nenhuma decisão precipitada.
- Prometo. Nunca o faço. – a voz de Catarina assumiu um tom grave e ambíguo.
- Também não penses de mais! – retorquiu-lhe efusivamente a amiga.
O bom humor imperava apesar de pairar no ar uma inflamada tensão.
A mente de Catarina fervilhava de ideias e imagens. Os pais, os amigos, o gato... até a bicicleta, a praia, o carro, ou o café da manhã junto ao Tejo a fizeram sentir uma antecipada sensação de saudade.
Noventa dias... afinal, seriam apenas três meses num país distante... com uma realidade que a atingia e sensibilizava como nenhum outro.
Algo nas suas entranhas vibrou.
Por mais que lutasse contra si própria sabia que não tinha como recusar e, ante esta sentença que o seu espírito lhe ditava, a latente força interior foi expelida sobre a forma de destemidas palavras:
- Sabes que mais?! Vou aceitar!
A partir daquele momento tudo ocorreu num ápice. Poucos dias depois a licença sem vencimento tinha sido entregue e aceite, a viagem estava reservada e informadas as pessoas que lhe eram mais queridas.
Catarina e Afonso haveriam de pisar o solo cambojano e, constatar a mística influência das monções, nos seus temperamentos habitualmente controlados.
Para já, a euforia que os contagiara era mais intensa que o habitual; ao ponto dos próprios amigos não lhe conseguirem ficar indiferentes.
O dia da despedida aproximava-se. Dali a dois dias entrariam no avião e nenhum livro, revista ou documentário os preparara para o que viveriam.
No dia anterior tinham saído com amigos comuns. Teria sido uma noite como tantas não fosse o clima de excitação e o facto de Catarina ter visto de relance Vasco.
Surpreendera a sua presença no preciso momento em que se ausentava.
A nostalgia que então sentiu contrastou com a alegria do momento.
Assaltou-a uma miscelânea de emoções e chocou-a olhar para ele como se não passasse de uma personagem de um qualquer filme ou um vulto numa fotografia desfocada.
Há meses que nada sabia de Vasco ou Juliana, nem sequer lhes tinha dedicado mais do que, um ou outro, esporádico segundo.
Olhou a linha do horizonte, sentada na areia dourada, sacudiu a densa melena que lhe envolvia o rosto e quedou-se imóvel a aguardar os pensamentos que se seguiriam.
Quase sentia pena de Juliana a quem a vida, os desgostos e a frustração transformaram de forma tão negativa. Acreditava que a sua essência não seria tão má como aparentava mas a falta de princípios era demasiado marcante para ser ignorada.
Suspirou tomando consciência de que aquela mulher nunca mudaria e jamais seria verdadeiramente feliz.
E Vasco?!
Sorriu...
Muito demoraria até que aquele menino em corpo de homem se apercebesse que o mundo existia para lá do seu meio-metro quadrado mas o dia chegaria.
Esperava que fosse feliz tanto quanto ela o seria.
A nenhum dos dois guardava rancor mas do amor que, no passado, lhes dedicara também nada restava.
O tempo encarregara-se de lhe demonstrar que nada acontece por acaso...
Semicerrou os olhos e inspirou o ar puro, extasiada com o cheiro a mar, a vida, a esperança...
As recordações esfumaram-se como que levadas pelas ondas de espuma branca e no seu íntimo algo estremecia... docemente. O passado expirava.
Cercava-a uma tranquilidade sem limite quando a pressentiu que alguém se aproximava. Ergueu o rosto vagarosamente...
Há anos que se conheciam mas naquele instante parecia-lhe que o via pela primeira vez: Os traços exóticos do rosto, o andar pausado, o cheiro inebriante da água de colónia e aquela vincada personalidade...
A inesperada consciência do homem que era provocou-lhe uma estranha e embriagante excitação. Tão possante quanto tentadora!
- Afonso...
Sorriram... Nenhum dos dois poderia continuar a esconder aquela certeza que brotava do mais profundo das suas almas: Depois daquela viagem aguardava-os um novo e sensual rumo...
A centelha do amor principiara a renascer das cinzas...
(Continua...)